Fisioter Bras
2021;22(4):550-9
ARTIGO
ORIGINAL
Investigação
de enurese noturna em escolares de 4 a 9 anos de idade
Investigation of nocturnal enuresis
in schoolchildren from 4 to 9 years old
Tânia
Aparecida Gomes*, Lays Magalhães Braga, M.Sc.**, Nilce Maria de Freitas Santos, M.Sc.***,
Kelly Christina de Faria Nunes, D.Sc.****
*Discente
do Centro Universitário de Pato de Minas (UNIPAM), **Docente do Centro
Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), ***Docente de pós-graduação do
IBRAESP, ****Docente do Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM)
Recebido
em: 6 de maio de 2021; Aceito em: 10 de agosto de 2021.
Correspondência: Nilce Maria de Freitas Santos, Av.
Bahia, 646 Centro, Limeira do Oeste MG
Tânia Aparecida Gomes: taniagomes1212@hotmail.com
Lays Magalhães Braga: laysbraga@unipam.edu.br
Nilce Maria de Freitas Santos: dranilcesantos@gmail.com
Kelly Christina de Faria Nunes:
kellynhafisiofaria@gmail.com
Resumo
Introdução: A enurese infantil caracteriza-se pela
perda de urina involuntária durante uma idade em que a criança já deveria ter
obtido controle, geralmente ocorre após o desfralde podendo chegar até a
adolescência. Objetivo: Avaliar a frequência e causas da enurese em
crianças de 4 a 9 anos de idade e traçar o seu perfil sociodemográfico. Métodos:
Estudo transversal, exploratório e quantitativo, composto por amostra de 50
pais e/ou responsáveis de escolares de duas escolas do município de Rio
Paranaíba/MG. Utilizou-se questionário sociodemográfico semiestruturado
elaborado pelas autoras e o formulário de avaliação de enurese para verificar a
procedência da queixa e histórico de saúde do escolar. Os dados foram
analisados pelo programa SPSS, versão 23.0. Resultados: Verificou-se
prevalência de 10% de enurese noturna, todas do sexo feminino, idade média de 5
± 0,7 anos e estudavam na rede pública. 60% não possuíam controle miccional
diurno, todas tinham episódios de perda de urina devido ao riso e não eram
capazes de reter quantidade razoável de urina. Todos os pais recriminavam o
quadro e a enurese incomodava a criança. Conclusão: Houve baixa
incidência de enurese noturna na amostra estudada (10%), sendo maior em
crianças do sexo feminino, caracterizando-a como enurese polissintomática.
Palavras-chave: enurese; Fisioterapia; saúde da
criança.
Abstract
Introduction: Infantile
enuresis is characterized by loss of involuntary urine at age of control,
usually occuring after defrosting until adolescence. Objective:
To evaluate the frequency and causes of enuresis in children aged 4 to 9 years
old and to outline their sociodemographic profile. Methods:
Cross-sectional, exploratory, and quantitative study, consisting of a sample of
50 parents and/or guardians of students from two schools in the city of Rio
Paranaiba/MG. A semi-structure sociodemographic questionnaire prepared by the
authors was used, and the enuresis evaluation form was used to verify the
source of the complaint and the student’s health history. The data were
analyzed using the SPSS program, version 23.0. Results: There was a
prevalence of 10% of nocturnal enuresis, all female, mean age 5 ± 0.7 years and
studying in public schools. 60% have not daytime urinary control, all had
episodes of urine loss due to laughter and were not able to retain a reasonable
amount of urine. All parents blamed the condition and enuresis bothered the
child. Conclusion: There was a low incidence of nocturnal enuresis in
the sample studied (10%), being higher in female children, characterizing it as
polysymptomatic enuresis.
Keywords: enuresis; Physical Therapy
Specialty; child health.
Enurese é um termo conhecido como sinônimo de incontinência
urinária quando envolve a questão da incontrolabilidade
do ato de micção [1]. Para muitos, o processo de micção pode parecer algo
simples e até mesmo inconsciente, mas na realidade trata-se de uma ação
fisiológica complexa e delicada. A ineficiência de algum componente desse
processo ou seu mau funcionamento pode comprometer todo o trato urinário e
afetar gravemente o bem-estar e a saúde de um indivíduo [2].
A palavra enurese vem do grego emourei que significa fazer
urina ou urinar. A enurese infantil é definida como uma disfunção miccional que
se caracteriza pela perda de urina involuntária durante uma idade em que a
criança já deveria ter obtido controle. O Código Internacional de Doenças (CID)
versão 10 define enurese como urinar na cama pelo menos uma vez no mês, durante
três meses, em crianças com cinco anos ou mais. Já a Associação Americana de
Psiquiatria define enurese como urinar na cama pelo menos duas vezes no mês,
durante três meses [3].
Algumas crianças sofrem de enurese noturna e, no decorrer
do dia, conseguem controlar a urina de forma habitual. Para estes, utiliza-se o
termo enurese noturna monossintomática. Já outras,
classificadas como portadoras de enurese polissintomática,
apresentam também sinais e sintomas de disfunção miccional durante o dia,
enquanto estão acordadas [4].
Levando este fato em consideração, para estabelecer se uma
criança é enurética, faz-se necessário atentar-se à
frequência e as contingências em que ocorre o escape de urina. Deve-se ter uma
compreensão da ocorrência, se em locais e horários inadequados, sem que exista
histórico ou condição clínica geral que justifique o mesmo [1].
A disfunção miccional resulta em problemas que além da
doença fisiológica, abrange também o âmbito psicossocial do indivíduo, o que na
infância pode acontecer de forma ainda mais problemática, uma vez que a criança
está em processo de construção social. Quando esta criança não se sente à
vontade para realizar tarefas cotidianas normais de uma criança e/ou é excluído
socialmente, seja por autoexclusão ou não, é provável que carregue consigo
traumas que vão influenciar consideravelmente sua postura e ações perante a
sociedade, durante toda a vida [5].
Neste contexto a fisioterapia pode ser uma grande aliada na
prevenção e no tratamento das enureses. Através de procedimentos
fisioterapêuticos é possível reajustar disfunções do trato urinário.
Entretanto, é de suma importância que o profissional fisioterapeuta entenda as
causas de tais disfunções para a realização de um procedimento que cause uma
mudança significativa não somente na doença funcional, mas também no impasse
social ocasionado pelo desequilíbrio do trato urinário, principalmente em
crianças que estão no processo de formação social [6].
Diante do exposto, a relevância da pesquisa partiu da
inexistência de uma metodologia de estudo precisa e bem referenciada quanto as
causas e consequências da enurese na infância, bem como seu tratamento, impacto
social e familiar. Ademais, é notável que a falta de conhecimento a respeito
deste assunto pode comprometer não somente a vida do paciente, mas, todo o contexto
em que este está inserido. Os estudos encontrados revelam que a fisioterapia
pode contribuir de forma muito positiva no que tange os aspectos de enureses,
principalmente por atuar de forma não invasiva.
O objetivo do presente estudo foi identificar a presença de
enurese noturna em escolares com faixa etária de 4 a 9 anos de idade, e os
principais fatores que influenciaram a ocorrência da enurese.
Material
e métodos
Esta pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa de caráter
transversal, exploratória e quantitativa. O projeto foi aprovado pelo Comitê de
Ética e Pesquisa do Centro Universitário de Patos de Minas por meio do parecer
n °3.836.591.
A coleta de dados foi realizada com pais e/responsáveis de
alunos de duas escolas, sendo uma da rede privada, e outra da rede pública, na
cidade de Rio Paranaíba, MG. A amostra foi composta por 50 pais e/ou
responsáveis dos escolares das escolas supracitadas. Os dados foram coletados
entre os meses de abril e junho de 2020.
Para esta composição foram adotados os seguintes critérios
de inclusão: pais e/ou responsáveis maiores de 18 anos que consentiram em
participar do estudo, escolares com idade entre 4 e 9 anos de idade; e,
excluídos aqueles escolares com comprometimento motor, doença neurológica e
infecção urinária atual.
Após seleção da amostra de acordo com os critérios de
inclusão e exclusão, os pais e/ou responsáveis responderam aos questionários,
mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A
aplicação deles foi realizada pelas autoras de forma online devido a pandemia
da COVID 19.
Inicialmente, aplicou-se um questionário semiestruturado
elaborado pelas próprias pesquisadoras a fim de traçar o perfil sociodemográfico
da amostra e investigar possíveis fatores causais para a enurese. Em seguida,
foi utilizado o Formulário de Avaliação de Enurese, que tem função de verificar
a procedência da queixa de enurese, bem como sua natureza (primária,
secundária, monossintomática, diurna ou noturna);
verificar comorbidades, como encoprese, verificar históricos de saúde e outras
informações médicas relevantes. A principal função deste instrumento foi
verificar se o participante se encaixava ou não nos critérios de inclusão da
pesquisa [7].
Para análise dos dados quantitativos, foi construída uma
planilha eletrônica, através do programa Excel®. Em seguida, os dados foram
transportados para o programa estatístico “Statistical
Package for Social Sciences”
(SPSS) versão 23.0 para análise estatística, sendo realizada análise descritiva
por meio de medidas de tendência central (média) e de variabilidade (desvio
padrão) para as variáveis numéricas e distribuição de frequência para as
nominais.
Resultados
Quando expressa a relação da frequência (%) de enurese
entre os escolares, no gráfico 1 e na tabela I, verificou-se que apenas 10% (n
= 5) apresentou enurese noturna com idade média de 5 ± 0,70 anos.
Fonte: Desenvolvido pelas autoras
Gráfico
1 – Distribuição da
frequência (%) quanto a presença de enurese noturna na amostra
Tabela
I – Distribuição da
média da idade (em anos) da amostra
Fonte: Desenvolvido pelas autoras
Na tabela II, são demonstrados os resultados relativos as
variáveis sociodemográficas e socioeconômicas da amostra estudada.
Tabela
II – Distribuição da
frequência das variáveis sociodemográficas da amostra
Fonte: Desenvolvido pelas autoras
Em relação às crianças com enurese pode-se afirmar que a
maioria era do sexo feminino (100%) e cor branca (60%). O maior percentual de
renda foi para até 2 salários (60%), moravam de aluguel (60%), possuíam irmãos
(60%) e estudavam em escola pública (80%).
A tabela III expressa a capacidade de controle miccional
diurno de acordo com a frequência (%).
Tabela
III – Resultados
referente a capacidade de controle miccional diurno da amostra
Fonte: Desenvolvido pelas autoras
Dentre as crianças com enurese noturna, a maioria 60% (n =
3), não possui controle miccional diurno.
Nas tabelas IV e V estão expressos os dados relativos à
ausência e presença de retenção (segurar urina), urgência miccional e
incontinência em relação ao estresse.
Tabela
IV – Resultados
referente a capacidade da criança em segurar a urina
Fonte: Desenvolvido pelas autoras
Tabela
V – Resultados
referente aos sinais de incontinência em relação ao stress (molhar-se quando
ri, tosse ou espirra)
Fonte: Desenvolvido pelas autoras
Observou-se que a maioria (60%) das crianças, às vezes,
consegue reter urina e que toda a amostra tem episódios de perda de urina
devido ao riso.
Referente a capacidade de esvaziar a bexiga totalmente, a
capacidade de armazenamento de urina e a frequência que os estudantes utilizam
o banheiro, observou-se que 80% da amostra é capaz de esvaziar totalmente a
bexiga e que todas as crianças com enurese não são capazes de reter uma
quantidade razoável de urina.
Concernente a relação entre a atitude dos pais em
detrimento da criança, observou-se que 100% dos pais apresentam uma atitude de
recriminação perante o quadro enurético do filho e
que todas as crianças (100%) se sentem incomodadas com a enurese.
Levando em consideração a presença ou ausência de
tratamento para a enurese noturna infantil. Os dados apresentados mostram que
dentre todos os casos, apenas uma criança (20%) já foi submetida a algum tipo
de tratamento para a enurese.
Em relação à faixa etária mais acometida com enurese no
presente estudo, resultado semelhante foi encontrado em revisão sistemática
realizada no Brasil que observou o predomínio de sintomas miccionais na
infância correspondente a 22,8%, e a faixa etária predominante foi de 3 a 9
anos [8].
Concernente ao sexo mais acometido, resultado corroborante
foi encontrado em estudo conduzido no Brasil, em que houve uma prevalência de
enurese de 10,5% para os meninos e 33,8% para as meninas [8]. Já em outra
pesquisa recente, que avaliou a prevalência de enurese em 3.602 crianças com
idade de sete anos pertencentes a coorte de nascimentos iniciada em 2004,
apontou uma prevalência de 11,7% entre os meninos e 9,3% meninas [9], resultado
discordante ao presente estudo.
Corroborando a presente pesquisa, estudo de coorte
conduzido no Sul do país concluiu que a enurese é uma patologia frequente em
crianças de famílias de baixo nível socioeconômico, o que demonstra uma
variação importante entre diferentes níveis sociais [10]. Além disso, há uma
associação direta entre enurese e famílias mais numerosas e com baixa
escolaridade [10].
A equipe de saúde deve estar atenta a estes dados no
intuito de identificar a vulnerabilidade destas famílias e promover ações de
enfrentamento à enurese noturna. O fato de a maioria das crianças com enurese
noturna não possuir controle miccional diurno também foi encontrado em estudo
realizado no Reino Unido, onde verificaram que a incontinência urinária diurna também
é mais comum em meninas e a maioria que possuía enurese noturna também não
possuía o controle diurno [11].
A maioria da amostra estudada, às vezes, conseguiu reter
urina e toda a amostra teve episódios de perda de urina devido ao riso. Tal fato
justifica-se pela caracterização de uma enurese risória. No ano de 2006 o
Comité de Uniformização de Terminologia da Sociedade Internacional de
Continência Pediátrica definiu enurese risória como uma síndrome rara durante o
qual ocorre uma micção involuntária, completa, especificamente durante ou
imediatamente após o riso. A enurese risória é uma situação raramente descrita
na literatura que surge inicialmente entre os 5 e os 7 anos, é mais frequente
no sexo feminino numa proporção de dois para um e possui, na maioria dos casos,
história familiar associada [12].
A enurese também pode estar associada ao aumento do
estresse, e é possível que o próprio sintoma, desconfortável e constante, possa
aumentar o estresse. A sensação de bexiga cheia enseja uma resposta emocional e
o ato de urinar é um comportamento. Razão pela qual se encontre associação
entre enurese problemas emocionais e comportamentais [13].
A enurese na infância influencia no comportamento da
criança e pode prejudicar sua qualidade de vida, causando um sentimento de
vergonha, culpa e constrangimento, o que pode ocasionar uma baixa autoestima,
afeta o rendimento escolar e até mesmo as relações sociais [14]. O enfretamento
do estresse deve fazer parte da rotina dessas crianças e seus familiares, um
acompanhamento psicológico direcionado ao problema pode diminuir o estresse e
consequentemente a enurese.
A forma que os pais lidam com a enurese está associada ao
impacto sofrido pelas crianças que vivenciam a enurese. Foi encontrado em outro
estudo um nível de correlação estatisticamente significativo entre as variáveis
impacto infantil e intolerância parental à enurese, além de apontar que, com o
avanço da idade, o nível de intolerância dos pais de crianças com enurese tende
a aumentar, assim como o impacto sofrido por essa condição [15].
Semelhante observação foi referida no estudo de Mota et
al. [10], ao relatar que a enurese afeta muitas famílias, pois urinar na cama pode
causar estigmas sociais e emocionais, estresse e ser inconveniente para a
criança e seus pais. Um dos grandes problemas está associado à postura dos
pais frente ao transtorno, ao se considerar que esta postura está diretamente
ligada ao impacto sofrido pelas crianças que vivenciam a enurese. Se faz
necessário apontar o fato de que a intolerância dos pais com a enurese fica
cada vez maior à medida que a criança avança a idade [16].
A fisioterapia pode ser um grande aliado no tratamento da
enurese noturna em crianças. Estudo de grupo controle que comparou o tratamento
fisioterapêutico com o medicamentoso em crianças com enurese polissintomática comprovou a eficácia da fisioterapia
nesses casos, sendo significativamente superior ao tratamento farmacológico
associado à mudança comportamental [17].
Embora existam poucos estudos, segundo Ferrari et al. [15], as
chances de um tratamento bem-sucedido estão diretamente ligadas a como estas
crianças são tratadas ao longo do processo, demonstrando a necessidade de
um bom preparo e conhecimento da equipe.
Devemos salientar que a exatidão dos dados em relação à
incidência da enurese noturna pode ser dificultada pela influência dos fatores
geográficos, sociais e culturais. Além disso, é importante ressaltar que o
momento em que o estudo foi realizado também não contribuiu positivamente para
os resultados. A pandemia dificultou consideravelmente o acesso à amostra e
impossibilitou que o estudo fosse realizado com um maior número de crianças, na
medida em que se observou uma porcentagem muito baixa de escolares com enurese
noturna.
Houve baixa prevalência de enurese noturna na amostra
estudada, sendo maior em crianças do sexo feminino. Todas as crianças com
enurese apresentaram dificuldade de controle ou retenção miccional,
incontinência associada ao riso e incapacidade de reter urina,
caracterizando-as como enurese polissintomática.
Destaca-se como ponto negativo a dificuldade de pais e filhos em lidar com o
problema, apontados na atitude de recriminação dos pais com as crianças e de
incomodo da criança frente aos pais. Além disso, a ausência de busca por
tratamento enfatiza ainda mais este contexto negativo frente à disfunção
urinária.
Os resultados encontrados deixam claro a extrema relevância
da realização de estudos mais aprofundados e com uma amostra maior, visando
formas de auxiliar, não só no tratamento da enurese, mas também na prevenção.