RELATO
DE CASO
Análise
da atividade elétrica do quadríceps e da função do joelho em indivíduo com
reconstrução do ligamento cruzado anterior
Analysis of electromyographic activity of
quadriceps and knee joint in subject with anterior cruciate ligament
reconstruction
Alessandra Sartori
Godoy, Ft.*, Isadora de Albuquerque Rosso, Ft.**, Rodrigo Lippold Radünz,
Ft.***, Alyssa Conte da Silva, Ft.****, Claudia Mirian de Godoy Marques,
D.Sc.*****
*Mestranda
em Reabilitação Funcional pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
Santa Maria/RS, **Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria/RS,
*** Professor do Curso de Fisioterapia do Centro Universitário Franciscano
(UNIFRA), Santa Maria/RS, ****Mestranda em Fisioterapia pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis/SC, *****Professora Adjunta do
Departamento de Ciências da Saúde (DCS) CEFID-UDESC, Florianópolis/SC
Recebido em 26 de
março de 2015; aceito 14 de fevereiro de 2016.
Endereço
de correspondência:
Cláudia Mirian de Godoy Marques, Universidade do Estado de Santa Catarina –
CEFID – UDESC, Rua Paschoal Simone 358, 88080-350 Florianópolis SC, E-mail: claudia.marques@udesc.br
Resumo
Introdução: A lesão do
Ligamento Cruzado Anterior (LCA) representa cerca de 50% de todas as lesões
ligamentares. Objetivo: Analisar a
atividade eletromiográfica do quadríceps durante o movimento de agachamento e a
função do joelho em indivíduo submetido ao processo de reconstrução cirúrgica
do LCA. Material e métodos: Estudo
observacional de natureza quali-quantitativa. Participou um indivíduo do sexo
masculino, com 16 anos, jogador de futebol, com 3
meses de pós-operatório. Utilizou-se um eletromiógrafo para coleta da atividade
elétrica do músculo quadríceps (RF+VL+VMO), escala de Lysholm do joelho que
avalia sintomas e função e uma ficha de avaliação. Realizaram-se três
repetições de Contração Isométrica Voluntária Máxima (CIVM) de 6 segundos e 3 agachamentos até 60º. Para análise, compararam-se os
valores obtidos do lado submetido à cirurgia e contralateral, através da
porcentagem de Root Mean Square
(RMS). Resultados: A atividade
eletromiográfica do quadríceps com LCA lesado manteve-se menor nos 3 músculos analisados em relação ao joelho contralateral; a
funcionalidade avaliada pela escala de Lysholm obteve resultado “excelente”. Conclusão: Há inibição do quadríceps
após a reconstrução do LCA no movimento de agachamento no sujeito estudado e a
função do membro inferior encontra-se preservada.
Palavras-chave: eletromiografia,
ligamento cruzado anterior, músculo quadríceps, movimento.
Abstract
Introduction: Damage to the Anterior Cruciate Ligament (ACL) represents about 50% of
all ligament injuries. Objective: To
analyze the electromyographic activity of the
quadriceps during the squat movement and knee function in one subject
undergoing ACL surgical reconstruction. Methods:
Observational study of qualitative and quantitative nature. One subject, male,
16 years old, football player, with 3 months postoperatively participated in
the study. We used an EMG to collect the electrical activity of the quadriceps
muscle (RF + VL + VMO), the Lysholm knee scale to
evaluate symptoms and function and an evaluation form. He performed 3
replicates of Maximum Voluntary Isometric Contraction (MVIC) in 6 seconds and
three squats up to 60 degrees. For analysis, it was compared the values of the
surgical knee and contralateral knee by percentage of Root Mean Square (RMS). Results: EMG activity of the quadriceps
with injured ACL remained lower in 3 muscles analyzed in relation to the
contralateral knee; functionality evaluated by Lysholm
scale achieved results "excellent". Conclusion: There was inhibition of the quadriceps after ACL
reconstruction in the squat movement in the subject studied and the function of
the lower limb is preserved.
Key-words:
electromyography, anterior cruciate ligament, quadriceps muscle, movement.
A ocorrência de lesão
do Ligamento Cruzado Anterior (LCA) representa cerca de 50% de todas as lesões
ligamentares [1]. Com a ruptura do LCA, ocorre instabilidade na articulação do
joelho com excessiva rotação interna e translação anterior da tíbia,
principalmente nos últimos graus de extensão [2].
O procedimento
cirúrgico, apesar de bastante eficiente para devolver a estabilidade mecânica
do joelho, é responsável juntamente com a lesão inicial do LCA por alterações
funcionais nessa articulação que vão repercutir negativamente na propriocepção,
desempenho funcional e padrão de ativação dos movimentos voluntários, entre
outros [3]. Dentre as principais alterações funcionais destacam-se a perda da
força e a redução do padrão de atividade voluntária muscular, sendo estas
alterações mais evidentes no músculo quadríceps da coxa (QC) [4,5].
Após a ruptura do LCA
a estabilidade ligamentar e o desempenho neuromuscular são afetados, com
consequente fraqueza do músculo QC devido à perda de mecanoceptores nele
localizados. Esta ausência dos receptores suprime o recrutamento das unidades
motoras durante a contração voluntária e este bloqueio da aferência sensorial
resulta na inativação da musculatura periarticular [4-6]. Uma maneira de se
avaliar um possível déficit muscular se faz através da Eletromiografia (EMG) podendo
esta ser utilizada como um importante recurso de avaliação para conhecer a
atividade elétrica produzida por diferentes grupos musculares [7].
As alterações na
atividade do músculo quadríceps femoral causadas, após lesão do ligamento
cruzado anterior, podem impactar diretamente nas atividades quotidianas do
indivíduo, como, por exemplo, subir escadas. Logo, a fim de avaliar sintomas e
correlacioná-los com algumas atividades, foi desenvolvida a escala de Lysholm
(ou questionário de Lysholm), a qual ainda inclui sintoma de instabilidade
correlacionando-o com alguma função, como o agachamento [8].
É sabido que há perda
da atividade eletromiográfica do quadríceps após lesão do LCA, no entanto
poucos trabalhos mensuram o quanto esta influencia a sintomatologia e função do
joelho. Com base nisso, o objetivo do estudo foi analisar a atividade
eletromiográfica do quadríceps durante o movimento de agachamento e a função do
joelho em um indivíduo que passou pela reconstrução do LCA.
Este é um estudo
observacional, de natureza quantitativa. O estudo foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), sob o protocolo
nº 217.2010.2. A pesquisa ocorreu no Laboratório de Pesquisa e Ensino do
Movimento Humano (LAPEM), da Universidade Federal de Santa Maria/RS (UFSM).
Participou desta
pesquisa um indivíduo do sexo masculino com idade de 16 anos, massa de 74 kg e
estatura de 175 cm, jogador de futebol, com ruptura parcial do LCA do membro
inferior esquerdo (membro não dominante), submetido à cirurgia de reconstrução
com enxerto duplo dos tendões dos músculos flexores mediais há três meses e em
tratamento fisioterapêutico desde então. O sujeito da pesquisa foi esclarecido
e orientado quanto à natureza e ao significado do estudo proposto e assinou o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Antes da realização
da coleta, foi aplicada uma ficha de avaliação com os dados de identificação do
paciente e perguntas abertas e fechadas referentes à lesão e à cirurgia. Para a
análise da função do joelho foi aplicada a Escala (ou questionário) de Lysholm.
A escala de Lysholm é uma avaliação funcional subjetiva das mais utilizadas no
seguimento de pacientes submetidos à cirurgia do joelho, sendo consagrada na
literatura pela sensibilidade, reprodutibilidade e confiabilidade [9].
Esta escala é
específica para sintomas do joelho, traduzido para a língua portuguesa e
validado por Peccin, Ciconelli e Cohem [8]. É composta por oito questões
relacionadas a sintomas e limitações funcionais, com alternativas de respostas
fechadas, cujo resultado final é expresso de forma nominal e ordinal, sendo
"excelente" de 95 a 100 pontos; "bom", de 84 a 94 pontos;
"regular", de 65 a 83 pontos e "ruim", quando os valores
forem iguais ou inferiores a 64 pontos. Aborda questões como mancar, se o
indivíduo utiliza algum apoio (bengala ou muleta, por exemplo), se apresenta
sensação de travamento do joelho e instabilidade, se há presença de dor, edema
e se há prejuízo em atividades como subir escadas e realizar agachamento [8].
Para a EMG,
realizou-se tricotomia e a limpeza do local com algodão e álcool 70% antes da
colocação dos eletrodos. O eletrodo de referência (terra) foi colocado sobre a
tuberosidade anterior da tíbia. Os músculos foram localizados por palpação dos
ventres musculares durante contrações isométricas. Para o RF, os eletrodos
foram fixados 12 cm acima da borda superior da patela. Para o VMO, foi
posicionado a 20% da distância entre o espaço articular medial do joelho e a
Espinha Ilíaca Ântero Superior (EIAS); para o VL, o eletrodo foi colocado a 1/3
da distância entre o bordo lateral da patela e a EIAS [10].
Os dois eletrodos
ativos e um eletrodo de referência foram acoplados a cada canal. Os eletrodos
de superfície circulares (Ag/AgCl), com 10 mm de
diâmetro (Meditrace®), foram colocados aos pares (distância entre eletrodos de
2 cm) nos membros inferiores dominante e não-dominante sobre os músculos vasto
medial oblíquo (VMO), vasto lateral (VL) e reto femoral (RF) segundo as
recomendações do SENIAM (Surface EMG for
a Non-Invasive Assessment of Muscles) [11].
Utilizou-se um
eletromiógrafo da marca Lynx, EMG1000, com doze canais para obtenção dos sinais
elétricos. O sinal EMG foi convertido de analógico para digital por meio de uma
placa CAD1026 (Lynx) com entrada para -5 a +5 volts e resolução de 10 bits. Os
dados foram adquiridos por meio do software AqDados®
5.0 (Lynx) e o sistema teve um modo comum de rejeição (CMRR) de 80dB. As
coletas foram realizadas com ganho de 1000 vezes, filtros de passa alta de 20Hz e de passa baixa de 500Hz, e frequência de amostragem
de 1000Hz. Os dados foram analisados a partir do início do movimento menos 300
milissegundos (ms) até o momento que o indivíduo tocou
a barra com os glúteos e voltou para a posição inicial. O movimento completo
foi considerado e foi realizada uma média aritmética simples entre as três
tentativas.
Para a normalização
dos sinais eletromiográficos, durante o agachamento, foi registrada,
previamente, a atividade eletromiográfica em contração isométrica voluntária
máxima (CIVM) de cada músculo, tanto no joelho com lesão, quanto no joelho sem
a lesão, afim de comparação entre esses posteriormente. Para a aquisição da
CIVM, o indivíduo foi posicionado sentado em uma cadeira, com o quadril fletido
a 90º, costas eretas, apoiadas no espaldar da cadeira. Foi solicitado ao
paciente que se mantivesse nessa posição, realizando uma extensão do joelho a
60º contra uma barra fixa entre duas superfícies. A angulação do joelho foi
previamente mensurada com um goniômetro da marca CARCI®. Nessa posição, foram
realizadas três tentativas com duração de seis segundos e intervalo de três
minutos entre as três tentativas, sob o comando de estímulos verbais do
avaliador, para que a contração fosse a mais intensa possível.
Após, foram
registrados os sinais elétricos do membro operado e do membro contralateral
(não operado), simultaneamente, durante três execuções do agachamento “slide
wall”, com o indivíduo em pé posicionado com as costas encostadas na parede e a
coluna mantida na posição neutra, pés alinhados um em relação ao outro, membros
superiores cruzados de modo que tocasse o ombro contralateral. Foi permitida a
execução de 2 repetições para o aprendizado do
movimento e para conferir se havia algum fio que fosse capaz de impedir os
movimentos, e se a captação dos sinais estava adequada, sem a presença de
ruídos.
A partir disso, foi
solicitado o agachamento até 60º de flexão de joelho. Esta medida foi feita
previamente com o goniômetro e foi colocada uma barra fixa como limitadora do
movimento, de modo que quando o sujeito tocasse com os glúteos na barra ele
retornasse à posição inicial. As fases concêntricas e excêntricas foram
analisadas juntas e a normalização foi realizada pela CIVM de ambos os lados
com intuito de comparação desses.
Para as medições
foram fixados pequenos segmentos de esparadrapo para que não ocorressem
variações no posicionamento, durante as execuções dos movimentos, da distância
dos pés, tendo como pontos de referências o hálux e a largura dos ombros, a
distância entre a parede e os calcâneos. Foi utilizada uma fita métrica para as
mensurações das distâncias de acordo com os pontos de referências.
As variáveis
funcionais foram analisadas de forma descritiva. As variáveis eletromiográficas
(% CIVM) são apresentadas com média e em forma de gráfico e não foram
comparadas entre si por se tratar de um estudo de caso.
A figura 1 demonstra
os valores de RMS normalizados do quadríceps (RF, VL e VMO) no membro inferior
esquerdo e direito através da porcentagem da CIVM durante o agachamento no
ângulo proposto (60º). É possível observar que a atividade eletromiográfica do
joelho com LCA lesado (LCAL) manteve-se menor nos três músculos analisados, em
relação ao joelho contralateral (LCAC). Para o LCAL os resultados expressos de
forma numérica foram: VL (19,82%), VMO (24,19%), RF (16,99%). Já para o LCAC,
os valores foram: VL (34,08%), VMO (41,17%), RF (54,11%).
Figura
1 - Atividade eletromiográfica do quadríceps
Reto Femoral (RF), Vasto Lateral (VL) e Vasto Medial Oblíquo (VMO),
normalizados e demonstrados como porcentagem (%) da Contração Isométrica
Voluntária Máxima durante a realização do agachamento a 60º.
O resultado obtido
com a aplicação do Questionário Lysholm foi considerado excelente, obtendo 95
pontos de um total de 100. A pontuação por item está no
tabela I.
Tabela
I - Pontuação obtida através do Questionário
Lysholm, pelo sujeito estudado, dividida por itens.
Os resultados obtidos
com o sujeito estudado demonstram que o joelho com LCA reconstruído apresenta
um déficit na atividade elétrica para todos os músculos analisados durante o
movimento de agachamento quando comparado com o joelho contralateral. A escolha
do movimento de agachamento (Cadeia Cinética Fechada - CCF) deu-se pelo fato de
que segundo alguns autores, durante os exercícios de CCF para membros
inferiores, o segmento distal fica relativamente fixo, ou seja, resulta na co-contração de toda a musculatura do membro inferior
[11,12]. O resultado da co-contração do quadríceps e
dos isquiotibiais durante o agachamento minimiza a translação da tíbia e as
forças de cisalhamento no joelho, diminuindo dessa forma a tensão no LCA [13].
Esse déficit na atividade EMG também foi observado por Williams et al. [4] que verificaram atrofia
significativa do músculo quadríceps em indivíduos com lesão unilateral do LCA,
comparando os membros lesado e não-lesado e falha na ativação voluntária em
ambos os grupos entre 8 e 10 %. Esses valores foram menores do que os
encontrados neste estudo, em que a diferença foi em média de 23% entre os dois
membros. Este déficit também foi constatado por alguns autores, os quais
observaram que quando o LCA sofre uma ruptura, a lesão afeta não só a
estabilidade ligamentar como também o desempenho neuromuscular, repercutindo
consequentemente na inibição do músculo quadríceps devido à perda de
mecanoceptores nele localizados. Esta ausência dos receptores suprime o
recrutamento das unidades motoras durante a contração voluntária e este
bloqueio da aferência sensorial resulta da inativação da musculatura
periarticular [5,6].
A inibição do
quadríceps que foi observada neste estudo parece ocorrer no sentido de
minimizar a anteriorização da tíbia pela contração deste músculo, estando de
acordo com o resultado de outros autores [14], protegendo dessa forma o LCA
reconstruído. Segundo Powers, é importante que se investigue o controle
neuromuscular do joelho, pois o conhecimento da disfunção tem o potencial de
identificar indivíduos em risco [15].
Apesar do déficit
verificado da atividade eletromiográfica do músculo quadríceps, a função
avaliada pela escala de Lysholm manteve-se preservada. Este resultado pode
estar relacionado às condições clínicas e funcionais apresentadas pelo
indivíduo estudado, que se mostraram semelhantes ao esperado para indivíduos
sadios do mesmo gênero e idade e também ao tratamento fisioterapêutico
realizado durante o período anterior a avaliação (três meses).
Comparando os resultados
encontrados neste estudo em se tratando da função, um estudo realizado por
Vasconcelos e colaboradores [16] analisou entre outros quesitos, o desempenho
funcional em indivíduos normais e com reconstrução do LCA. Foi mostrado que na
avaliação funcional através do questionário Lysholm, sujeitos que haviam
passado pela reconstrução cirúrgica utilizando enxerto dos tendões dos flexores
mediais apresentavam a pontuação média de 93,8 pontos, dado muito similar ao
encontrado neste estudo, que foi 95 pontos. O resultado obtido, que a partir
desta escala é considerado como excelente, parece contraditório quando
comparado aos achados eletromiográficos, que mostram inibição do grupo extensor
do joelho no membro operado. Porém, é possível que a redução da atividade EMG
do quadríceps evite o deslocamento anterior da tíbia durante o caminhar, o
pular e na flexo-extensão do joelho [17], fato que poderia explicar os
resultados desta pesquisa através da escala subjetiva de funcionalidade.
A principal limitação
deste estudo é tratar-se de um estudo de caso, fato que não permite generalizar
os resultados encontrados. Outra limitação é a ausência das repetições das
análises. Porém, acredita-se que este estudo tenha implicações para a prática
clínica, pois os fisioterapeutas devem estar atentos quanto à importância da
avaliação funcional do joelho afetado pela lesão e reconstrução do LCA e do
membro inferior como um todo, devido ao possível deficit de recrutamento dos
músculos estabilizadores (alteração na co-contração)
característico do procedimento cirúrgico.
Esta pesquisa revelou
que há inibição do quadríceps após a reconstrução do LCA no movimento de
agachamento de um sujeito estudado, porém a função do joelho encontrou-se
preservada quando avaliada através da escala de Lysholm, considerada como
excelente.
Os dados coletados
neste estudo contribuem para o conhecimento da atividade muscular e função em
indivíduos com lesão do LCA e sugere-se um número maior da amostra para melhor
compreensão dos dados verificados.