Fisioter Bras 2022;2391):73-9

doi: 10.33233/fb.v23i1.4882

RELATO DE CASO

Fisioterapia durante o transplante de células tronco hematopoiéticas alogênico para o tratamento de anemia aplásica: um relato de caso considerado raro

Physical therapy during allogeneic hematopoietic stem cell transplantation for the treatment of aplastic anemia: a rare clinical case

 

Rafael Ailton Fattori, Ft.*, Fabrício Edler Macagnan**

 

*Especialista em Onco-Hematologia pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (ISCMPA), **Professor no Departamento de Fisioterapia (UFCSPA), Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Saúde com Ênfase em Onco-Hematologia UFCSPA/ISCMPA e Programa de Pós-Graduação em Ciências da Reabilitação (UFCSPA)

 

Recebido 13 de agosto de 2021; Aceito em 30 de dezembro de 2021.

Correspondência: Fabrício Edler Macagnan, Av. Itajaí 368/301, 90470-140 Porto Alegre RS

 

Rafael Ailton Fattori: rafael.fattori@hotmail.com

Fabrício Edler Macagnan: fabriciom@ufcspa.edu.br

 

Resumo

Introdução: A anemia aplásica (AA) é uma condição clínica considerada rara que se desenvolve a partir da disfunção hematopoiética da medula óssea. O tratamento indicado é o transplante de células tronco hematopoiéticas (TCHP). Objetivo: Descrever o caso clínico e as estratégias utilizadas pela fisioterapia durante o processo de reabilitação física. Métodos: Trata-se de estudo de caso, realizado com paciente do sexo feminino, 34 anos de idade e diagnóstico de AA severa. Após avaliação clínica foi indicado o TCHP alogênico de um doador aparentado que apresentou compatibilidade histo-imunológica. O tempo total de internação hospitalar foi de 35 dias. Os objetivos da reabilitação física foram o de manter a ventilação pulmonar, prevenir o acúmulo de secreção, minimizar a progressão da fadiga, perda de força e resistência muscular. Resultados: A estratégia utilizada para contornar a extrema fragilidade hematológica e as implicações clínicas decorrentes evitou perda expressiva no desempenho no teste de caminhada de seis minutos (-10%) ao final da internação. Conclusão: Foi um verdadeiro desafio a implementação da reabilitação física durante o TCHP para o tratamento da AA, mas a estratégia adotada demonstrou-se segura, bem tolerada e suficiente para evitar maiores prejuízos no estado funcional.

Palavras-chave: modalidades de fisioterapia; transplante de medula óssea; medicina física e reabilitação; terapia por exercício; exercícios respiratórios.

 

Abstract

Introduction: Aplastic anemia (AA) is a rare clinical condition that develops from hematopoietic bone marrow dysfunction. The indicated treatment is hematopoietic stem cell transplantation (HSCT). Objective: To describe the clinical case and the strategies used by physical therapy during the physical rehabilitation process. Methods: This case report was carried out with a female patient, 34 years old, diagnosed with severe AA. After clinical evaluation, allogeneic HSCT from a related donor with histo-immunological compatibility was indicated. The patient remained hospitalized for 35 days. The goals of physical rehabilitation were to maintain pulmonary ventilation, prevent the accumulation of secretions, and minimize the progression of fatigue, loss of muscle strength and endurance. Results: The strategy adopted to face this extreme hematological fragility and its clinical implications avoided a significant loss in the six-minute walk test performance (-10%) at the end of hospitalization. Conclusion: The implementation of physical rehabilitation during HSCT for the treatment of AA was a real challenge, but the adopted strategy proved to be safe, well tolerated and sufficient to avoid further damage to the functional status.

Keywords: physical therapy modalities; bone marrow transplantation; physical and rehabilitation medicine; exercise therapy; breathing exercises.

 

Introdução

 

A aplasia medular ou anemia aplásica (AA) é uma doença rara e heterogênea [1], que no Brasil apresenta incidência de 1,6 casos por milhão de habitantes/ano. Pode ser desencadeada tanto pela ação de fatores congênitos quanto adquiridos que levam à disfunção hematopoiética da medula óssea reduzindo a quantidade dos componentes do tecido sanguíneo. Clinicamente a AA é marcada por acentuada hipocelularidade medular e moderada/grave pancitopenia no sangue periférico. Contudo, essas alterações clínicas se manifestam livres de qualquer evidência de infiltração neoplásica [1,2]. A queda nas concentrações de hemácias, leucócitos e plaquetas estão associadas com a manifestação de 1) fadiga, 2) dispneia aos moderados/leves esforços, 3) taquicardia, 4) palidez; 5) infecções frequentes, 6) hemorragias frequentes, 7) epistaxe e 8) equimoses [3].

O transplante de células tronco hematopoiéticas (TCTH) é a primeira linha de tratamento para pacientes com menos de 40 anos [4]. Porém, o procedimento de TCTH está condicionado à ablação medular total, induzida por quimioterapia. Ao sobrepor ablação química na AA, espera-se exacerbação acentuada da fragilidade física e superior ao que normalmente ocorre nos demais tratamentos realizados no serviço de transplante de medula óssea (TMO) [5].

A fragilidade física está intimamente ligada à fraqueza muscular principalmente manifestada nos casos mais crônicos de AA, cujos efeitos do desuso prolongado agrava a intolerância ao esforço. Os danos promovidos pela baixa oxigenação tecidual, as repercussões inflamatórias sistêmicas e a exposição à corticoide e quimioterápicos atuam de maneira cumulativa sobre a redução da funcionalidade [6]. A degradação da capacidade física pode ainda ser ampliada na presença de complicações pulmonares, presentes em 40-60% dos pacientes submetidos ao TCTH. Nestas condições, as alterações pulmonares (restritiva/obstrutiva) são comumente oriundas de edema pulmonar, pneumonia, hemorragia alveolar difusa, infecções bacterianas/virais/fúngicas e bronquiolite obliterante [7].

Estabelecer um programa de reabilitação física durante o período de internação hospitalar para TMO ainda é um desafio para o fisioterapeuta em função da ampla instabilidade clínica inerente ao processo. Porém a escassez de informação, nessa rara condição clínica, justifica a publicação do relato das condutas fisioterapêuticas adotadas na condução de um caso dessa natureza, para levar à público detalhes da intervenção.

 

Apresentação do caso

 

Este estudo de caso foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (CAEE:80025417.8.0000.5335). Trata-se de uma paciente do sexo feminino, 34 anos de idade e diagnóstico de AA severa no ano de 2015. Após avaliação clínica foi indicado o TCTH alogênico de um doador aparentado que apresentou compatibilidade histo-imunológica. O tempo total de internação hospitalar foi de 35 dias. A ablação química da medula (condicionamento) foi realizada com ciclofosfamida associada à flucorabina. A profilaxia para a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH) foi realizada com ciclosporina e metotrexato.

Conforme esperado, durante a internação houve intenso agravamento clínico imposto pelo tratamento mieloablativo e durante a fase de pancitopenia houve a necessidade de 8 transfusões de plaquetas (3 pré e 5 pós-transplante) e 6 transfusões de hemácias (3 pré e 4 pós-transplante). Durante esse período, a adesão às condutas fisioterapêuticas relacionadas a função motora, foi bastante afetada, e por esse motivo a sobrecarga muscular utilizada durante a reabilitação física foi ajustada diariamente de forma autorregulada pelo próprio paciente [8].

O atendimento fisioterapêutico iniciou cinco dias pré-transplante e permaneceu até a alta hospitalar. Foram realizadas 21 das 23 sessões de fisioterapia previstas. Uma sessão suspensa por episódio de vômito e outra por pancitopenia severa. A média do tempo de duração dos atendimentos foi de 30 minutos, realizadas 6 vezes por semana.

1) Viabilidade clínica: As condições clínicas para a execução das atividades motoras e respiratórias foram avaliadas diariamente. Plaquetas superiores a 10.000 mm3, hemoglobina superior a 5 g/dL e hematócrito superior a 15% foram utilizadas como critério para a reabilitação motora. O teste de caminhada de 6 minutos (TC-6) foi utilizado para avaliar a capacidade funcional pré-transplante e na alta hospitalar (Tabela II).

2) Objetivos da reabilitação física: Manter a ventilação pulmonar, prevenir o acúmulo de secreção, minimizar a progressão da fadiga, perda de força e resistência muscular.

3) Critérios de determinação da viabilidade clínica para a execução da reabilitação física: Avaliação da tosse e exercícios ventilatórios de alto fluxo e/ou contra resistências foram realizados apenas com plaquetas acima de 20.000/mm3. Com plaquetas entre 10.000 e 20.000 mm3, foram realizados exercícios isométricos ou ativo-livres, enquanto que com valores acima de 20.000 mm3 acrescentava-se resistência leve.

4) Condutas da reabilitação física:

 

Respiratória: Foram empregadas técnicas de expansão pulmonar e manobras de higiene brônquica. Exercícios insuflantes por meio de recrutamento inspiratório voluntário máximo com o objetivo de aumentar o gradiente de pressão transpulmonar e a subsequente ventilação pulmonar [9]. Técnicas de aumento do fluxo expiratório (mobilização por terapia expiratória manual, huffing de alto e baixo volume, tosse assistida e ciclo ativo da respiração), com o objetivo de sobrecarregar o recrutamento dos músculos expiratório e auxiliar no clearance mucociliar [9].

 

Motora: Movimentos articulares amplos, estimulação de força muscular, treino de equilíbrio e movimentos funcionais [3,10]. Amplitude de movimento foi trabalhada de forma global. Foram realizados alongamentos passivos com sustentação de 20s de grandes grupos musculares. A estimulação de força foi trabalhada nos grandes grupos musculares dos membros superiores e inferiores. A resistência ao movimento foi do tipo manual com intensidade suficiente para induzir fadiga entre 8 e 12 repetições. Foram executadas no máximo 2 séries de sobrecarga por grupo muscular/sessão. O treino de equilíbrio foi realizado com o paciente em sedestação e em ortostase, com olhos abertos e fechados. O movimento funcional estabelecido no atendimento foi o treino de marcha, que nesta condição clínica foi limitada ao ambiente do leito em função da maior necessidade de isolamento.

 

Tabela IHemograma

 

VCM = volume corpuscular médio; HCM = hemoglobina globular média; CHCM = concentração de hemoglobina corpuscular média; RDW = Amplitude de distribuição dos glóbulos vermelhos

 

Tabela II - Desempenho no teste de caminhada de 6 minutos – TC-6

 

SpO² = saturação periférica de oxigênio; FR = frequência respiratória; FC = frequência cardíaca; MI = membro inferior; IMC = índice de massa corporal

 

Discussão

 

De um modo geral, mesmo diante de um quadro de extrema fragilidade hematológica, a adesão ao programa de reabilitação física pode ser considerada satisfatória e segura, pois não houve episódios de intercorrências relacionadas aos exercícios físicos realizados. Houve, grande oscilação no desempenho físico, principalmente durante a fase mais severa da pancitopenia induzida pela ablação química da medula já previamente comprometida (Tabela I). É importante ressaltar que mesmo diante de tantas transfusões de plaquetas e hemácias, o programa de reabilitação física continuou como programado inicialmente. Evidentemente que com o cuidado redobrado, e com a utilização da escala de esforço percebido (BORG) para guiar e balizar a intensidade do recrutamento muscular, foi dada total liberdade para a interrupção e modulação da intensidade dos exercícios conforme tolerância. Contudo, o incentivo constante para a execução dos exercícios foi estabelecido como regra operacional. Na avaliação final, observamos redução de 58 m (-10%) no TC-6 (Tabela II), que foi considerado como um resultado satisfatório diante de tamanha limitação física observada ao longo dos 35 dias de internação.

 

Conclusão

 

Foi um verdadeiro desafio a implementação da reabilitação física durante o TMO para o tratamento da AA. Contudo, a estratégia adotada foi bem tolerada e eficaz ao proporcionar manutenção do estado funcional. Pode-se supor que o treinamento físico modulado às condições clínica e física diárias é viável mesmo para essa extrema condição de fragilidade hematológica. O resultado do desempenho no TC-6 reforça a indicação da reabilitação física, dentro dos limites de contagem celular propostos, para minimizar os efeitos deletérios de uma internação prolongada já demonstrada anteriormente, e deve ser mantida sempre que possível para preservar e/ou aprimorar a funcionalidade.

 

Conflitos de interesse

Declaramos para todos os efeitos que não há nenhum conflito de interesse que possa ser declarado.

 

Fonte de financiamento

Rafael Ailton Fattori recebeu bolsa de estudo do Programa de Residência Multiprofissional do Ministério da Educação do Governo Federal do Brasil.

 

Contribuição dos autores

Coleta de dados, execução da intervenção terapêutica, apresentação e discussão dos resultados: Fattori RA; Elaboração de todas as etapas de escrita: Fattori RA, Macagnan FE; Revisão final do artigo: Macagnan FE

 

Referências

 

  1. Marsh JCW, Ball SE, Cavenagh J, Darbyshire P, Dokal I, Gordon-Smith EC, et al. Guidelines for the diagnosis and management of aplastic anaemia. Br J Haematol 2009;147(1):43-70. doi: 10.1111/j.1365-2141.2009.07842.x [Crossref]
  2. Maluf E, Hamerschlak N, Cavalcanti AB, Júnior AA, Eluf-Neto J, Falcão RP, et al. Incidence and risk factors of aplastic anemia in Latin American countries: the LATIN case-control study. Haematologica 2009;94(9):1220-6. doi: 10.3324/haematol.2008.002642 [Crossref]
  3. Killick SB, Bown N, Cavenagh J, Dokal I, Foukaneli T, Hill A, et al. Guidelines for the diagnosis and management of adult aplastic anaemia. Br J Haematol 2016;172(2):187-207. doi: 10.1111/bjh.13853 [Crossref]
  4. Höchsmann B, Moicean A, Risitano A, Ljungman P, Schrezenmeier H. Supportive care in severe and very severe aplastic anemia. Bone Marrow Transplant 2013;48(2):168-73. doi: 10.1038/bmt.2012.220 [Crossref]
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  7. Barğı G, Güçlü MB, Arıbaş Z, Akı ŞZ, Sucak GT. Inspiratory muscle training in allogeneic hematopoietic stem cell transplantation recipients: a randomized controlled trial. Support Care Cancer 2016;24(2):647-59. doi: 10.1007/s00520-015-2825-3 [Crossref]
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  9. França EÉT, Ferrari F, Fernandes P, Cavalcanti R, Duarte A, Martinez BP, et al. Physical therapy in critically ill adult patients: recommendations from the Brazilian Association of Intensive Care Medicine Department of Physical Therapy. Rev Bras Ter Intensiva 2012;24(1):6-22. doi: 10.1590/S0103-507X2012000100003 [Crossref]
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