Fisioter Bras 2021;22(4):500-1
EDITORIAL
O
português, o desprazer e a anedonia
Marco
Orsini*, Acary Souza Bulle Oliveira**
*Médico,
D.Sc., **Médico, D.Sc.,
Unifesp, Escola Paulista de Medicina
Correspondência: Marco Orsini, orsinimarco@hotmail.com
A língua portuguesa, indubitavelmente,
fora muito ferida nas últimas décadas. Em associação, a anedonia (lentificação
da capacidade de sentir interesse e prazer), pairou na leitura de artigos
científicos e\ou trabalhos de mestrado e doutorado. Os pesquisadores, salvo
raras exceções, encontram-se “disfuncionais” no que tange aos comportamentos
associados à recompensa ou a domínios de valência positiva, quando se inclinam
para a leitura. Um primeiro parágrafo já é capaz de desconstruir a ideia de um
trabalho brilhante, tipo aqueles ovos de Colombo. Realmente a língua
portuguesa, quando bem aplicada, nos antecipa, nos motiva e faz eclodir um
retorno “límbico” do “valeu a pena”.
O
idioma por nós escrito e falado
tornou-se uma espécie de “raridade” quando o assunto
é a nobreza, o gingado, as trocas provisórias e
improvisadas de palavras. Como devemos
corrigir ou melhorar essa discussão? Lendo. O ato de ler
dignifica, fornece
robustez nas discussões e ainda apresenta estímulos
diversos aos substratos
neurais, como estruturas, neurotransmissores e circuitos neurais
semelhantes.
Todos possuímos dons, mas quando esses
pecam, nos sobram a perseverança. Se não somos capazes de remodelar o nosso
DNA, porque não pensar na hipótese epigenética? Ler e escrever funcionam como
facilitadores da plasticidade neural. Essa estória de que o papel aceita tudo
em parte é verdade, pois esse não possui capacidade de expressar o quanto é
agredido com erros de concordância verbal, nominal, crases, pontos e
tal...
Ler é poder viver a partir da nossa
“vidinha” única, muitas outras vidas e
descobrir muitas outras coisas que nos ampliam a humanidade.
Percebam o exemplo de uma repetição de palavras que não “fere” o
nosso idioma.
Quando digo ler e escrever não me refiro
aos artigos e livros científicos, mas uma leitura densa; tipo aquela que nos
preenche e remete algum significado. Não podemos esquecer-nos dos “Poemas
Escolhidos” de Gregório de Matos; “Quincas Borda” de Machado de Assis, “Nove
Noites” de Bernardo Carvalho e “A relíquia” de Eça de Queiroz. Esse último
acreditamos ter sido combalido por uma doença denominada Polineuropatia Amiloidótica Familiar.
Nesse universo de leitura não podemos
deixar de citar a genialidade de Clarice Lispector e, sem ancorar a emoção no
cerne desse texto, as crônicas de Bety Orsini.
Sentimos falta, muita falta da destreza das palavras.
A vida e visão desses autores citados acima estão muito distantes de nós, mas a escrita de um idioma que nascera em nosso Brasil é obrigação para todos que leem esse editorial. Realmente o início de leituras densas nos traz obstáculos de interpretação, de síntese, de “negociação” com os autores. O contexto cultural e literário mudou; infelizmente para pior. Voltemos a sublinhar textos de Machado de Assis; busquemos palavras no dicionário e vejamos o comportamento e “esconderijo” dessas durante os textos. Um sistema filosófico, por mais que não seja admirável, deve eclodir um pouquinho dentro de nós.
Dedico este editorial a Elizabeth Orsini e Carlos Henrique Melo Reis.