Fisioter Bras 2021;22(4):500-1

doi: 10.33233/fb.v22i4.4906

EDITORIAL

O português, o desprazer e a anedonia 

 

Marco Orsini*, Acary Souza Bulle Oliveira** 

 

*Médico, D.Sc., **Médico, D.Sc., Unifesp, Escola Paulista de Medicina

 

 

Correspondência: Marco Orsini, orsinimarco@hotmail.com

 

      A língua portuguesa, indubitavelmente, fora muito ferida nas últimas décadas. Em associação, a anedonia (lentificação da capacidade de sentir interesse e prazer), pairou na leitura de artigos científicos e\ou trabalhos de mestrado e doutorado. Os pesquisadores, salvo raras exceções, encontram-se “disfuncionais” no que tange aos comportamentos associados à recompensa ou a domínios de valência positiva, quando se inclinam para a leitura. Um primeiro parágrafo já é capaz de desconstruir a ideia de um trabalho brilhante, tipo aqueles ovos de Colombo. Realmente a língua portuguesa, quando bem aplicada, nos antecipa, nos motiva e faz eclodir um retorno “límbico” do “valeu a pena”. 

      O idioma por nós escrito e falado tornou-se uma espécie de “raridade” quando o assunto é a nobreza, o gingado, as trocas provisórias e improvisadas de palavras. Como devemos corrigir ou melhorar essa discussão? Lendo. O ato de ler dignifica, fornece robustez nas discussões e ainda apresenta estímulos diversos aos substratos neurais, como estruturas, neurotransmissores e circuitos neurais semelhantes.

      Todos possuímos dons, mas quando esses pecam, nos sobram a perseverança. Se não somos capazes de remodelar o nosso DNA, porque não pensar na hipótese epigenética? Ler e escrever funcionam como facilitadores da plasticidade neural. Essa estória de que o papel aceita tudo em parte é verdade, pois esse não possui capacidade de expressar o quanto é agredido com erros de concordância verbal, nominal, crases, pontos e tal... 

      Ler é poder viver a partir da nossa “vidinha” única, muitas outras vidas e descobrir muitas outras coisas que nos ampliam a humanidade. Percebam o exemplo de uma repetição de palavras que não “fere” o nosso idioma.

      Quando digo ler e escrever não me refiro aos artigos e livros científicos, mas uma leitura densa; tipo aquela que nos preenche e remete algum significado. Não podemos esquecer-nos dos “Poemas Escolhidos” de Gregório de Matos; “Quincas Borda” de Machado de Assis, “Nove Noites” de Bernardo Carvalho e “A relíquia” de Eça de Queiroz. Esse último acreditamos ter sido combalido por uma doença denominada Polineuropatia Amiloidótica Familiar.

      Nesse universo de leitura não podemos deixar de citar a genialidade de Clarice Lispector e, sem ancorar a emoção no cerne desse texto, as crônicas de Bety Orsini. Sentimos falta, muita falta da destreza das palavras.

      A vida e visão desses autores citados acima estão muito distantes de nós, mas a escrita de um idioma que nascera em nosso Brasil é obrigação para todos que leem esse editorial. Realmente o início de leituras densas nos traz obstáculos de interpretação, de síntese, de “negociação” com os autores. O contexto cultural e literário mudou; infelizmente para pior. Voltemos a sublinhar textos de Machado de Assis; busquemos palavras no dicionário e vejamos o comportamento e “esconderijo” dessas durante os textos. Um sistema filosófico, por mais que não seja admirável, deve eclodir um pouquinho dentro de nós. 

       Dedico este editorial a Elizabeth Orsini e Carlos Henrique Melo Reis.