REVISÃO
Modulação
da função autonômica cardíaca e incontinência urinária feminina
Modulation of cardiac autonomic function and female urinary incontinence
Juliana Falcão
Padilha, Ft., M.Sc.*, Melissa Medeiros Braz, Ft., D.Sc.**,
Jefferson Luiz Brum Marques, D.Sc.***, Cláudia Mirian de Godoy Marques,
D.Sc.****
*Docente
do curso de Fisioterapia da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA),
Uruguaiana/RS, **Departamento de Fisioterapia, Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), Santa Maria/RS, ***Departamento de Engenharia Elétrica da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC,
****Departamento de Ciências da Saúde (DCS - UDESC), Florianópolis/SC
Recebido em 8 de agosto de 2014; aceito em 12 de dezembro de 2015.
Endereço
para correspondência:
Cláudia Mirian de Godoy Marques, CEFID – UDESC, Rua Paschoal Simone 358
Coqueiros 88080-350 Florianópolis SC, E-mail: claudia.marques@udesc.br, Juliana
Falcão Padilha: jufpadilha@gmail.com, Melissa Medeiros Braz: melissabraz@hotmail.com,
Jefferson Luis Brum Marques: jmarques@ieb.ufsc.br
Resumo
Introdução: O Sistema Nervoso
Autônomo (SNA) atua nas fases de enchimento e esvaziamento da bexiga,
controlados pelo SNA simpático e o parassimpático. Objetivo: Revisar a literatura
a respeito da aplicação da análise da Variabilidade da Frequência Cardíaca
(VFC) na Incontinência Urinária (IU). Método:
Revisão narrativa de literatura. Realizou-se a busca nas bases de dados
Medline, Pubmed e Bireme. Critérios de inclusão: artigos científicos que
contemplassem o tema proposto, publicados em português ou inglês, no período de
2005 a 2014. Excluíram-se trabalhos que envolvessem a VFC associada a outras
doenças, outras circunstâncias e IU masculina, estudos realizados com crianças e
experimentais com animais, pesquisas com enfoque farmacológico, monografias,
dissertações e teses. Resultados:
Foram selecionados 8 artigos que se encaixaram nos
critérios de inclusão. Os estudos analisados sugerem que o desequilíbrio do SNA
pode estar relacionado às disfunções urinárias. A VFC pode servir como uma
ferramenta para avaliar a atividade do SNA alterada em pacientes com disfunção
urológica. Conclusão: A VFC é uma
ferramenta simples e não-invasiva que permite a
compreensão da função do SNA simpático e parassimpático na atividade urológica.
A análise de VFC ainda é pouco explorada no âmbito da Fisioterapia em Saúde da
Mulher, tornando necessários estudos futuros.
Palavras-chave: sistema nervoso
autônomo, saúde da mulher, incontinência urinária, sistema nervoso simpático,
sistema nervoso parassimpático.
Abstract
Introduction: The Autonomic Nervous System (ANS) acts in the bladder filling and
emptying stages, which are controlled by the sympathetic and parasympathetic
systems. Objective: To review the literature in respect to Heart Rate
Variability (HRV) in Urinary Incontinence (UI). Method: This is a narrative review of the literature. A search on
Medline, Pubmed and Bireme databases was performed.
Inclusion criteria: Scientific articles that addressed the proposed theme,
published in Portuguese or English, within the period of 2005 to 2014. Research
work involving Cardiac Autonomic Modulation associated with other diseases,
other circumstances and male UI, studies with children and experimental animals,
pharmacological studies, monographs, dissertations and theses were excluded. Results: Eight articles fitting the
criteria were selected. The analyzed studies suggest that the imbalance in the
ANS may be associated to urinary dysfunction. HRV can be employed as a tool to
evaluate altered autonomic nervous activity in patients with urological
dysfunction. Conclusion: HRV is a
simple and non-invasive tool which provides comprehension of sympathetic and
parasympathetic ANS function in women’s urological activity. HRV analysis is
little explored in the context of Women’s Health Physiotherapy making future
studies warranted.
Key-words: autonomic
nervous system, women's health, urinary incontinence, sympathetic nervous
system, parasympathetic nervous system.
A incontinência
urinária (IU) é um problema de saúde pública que afeta, na maioria, mulheres
[1-3], podendo surgir em qualquer idade [4]. A prevalência da IU na população
feminina é elevada e tem um impacto negativo sobre a qualidade de vida destas
mulheres [5,6].
A Sociedade
Internacional de Continência (SIC) expõe que qualquer perda involuntária de
urina é definida como IU, o que pode gerar um problema social e higiênico [7].
Durante muitos anos a IU era apenas um sintoma, porém passou a ser considerada
uma patologia na Classificação Internacional de Doenças (CID 10/OMS) [8,9].
A etiologia desta
patologia consiste em múltiplos fatores [10,11]. Há evidências de que gravidez,
parto, diabetes e Índice de Massa Corporal (IMC) elevado, peso do recém-nascido
[12,13], tosse crônica, depressão, sintomas do trato urinário, histerectomia
anterior, acidente vascular encefálico [14,15] e atividade física de alto
impacto [16] estejam associados como fator de risco aumentado para IU.
O Sistema Nervoso Autônomo
(SNA) regula o mecanismo de continência urinária, e o trato urinário inferior é
inervado por um complexo neuronal integrado dos circuitos neuronais periféricos
aferentes e eferentes, envolvendo o SNA simpático e parassimpático e por
neurônios somáticos. O sistema nervoso simpático estimula o fechamento do
esfíncter da uretra, bem como o relaxamento do músculo detrusor durante o
enchimento da bexiga. O sistema nervoso parassimpático é responsável pela
contração do músculo detrusor durante a micção, enquanto, simultaneamente,
relaxa o esfíncter uretral [17].
A Variabilidade da
Frequência Cardíaca (VFC) é uma importante ferramenta de avaliação não-invasiva
da integridade da função neurocardíaca. Ela
reflete a interação das eferências simpática
e parassimpática sobre o nodo
sinusal. No entanto, para se avaliar a relativa
contribuição de cada uma dessas
eferências na modulação autonômica
cardíaca, são utilizadas análises no
domínio
do tempo e da frequência [18].
A VFC descreve as
oscilações no intervalo entre batimentos cardíacos consecutivos (intervalos
R-R), assim como oscilações entre frequências cardíacas instantâneas
consecutivas. Trata-se de uma medida que pode ser utilizada para avaliar a
modulação do SNA sob condições fisiológicas, tais como
em situações de vigília e sono, diferentes posições do corpo, treinamento
físico, e também em condições patológicas [19]. Pode ser usada para avaliar a
atividade simpática e parassimpática, a qual investiga o funcionamento do
sistema nervoso autonômico, especialmente o equilíbrio da atividade simpática
vagal. Assim, fornece uma análise qualitativa, quantitativa e não-invasiva da função autonômica global. O teste é baseado
no princípio fisiológico de que a VFC reflete o tônus simpato-vagal e pode ser
quantificada como a frequência do nódulo sino-auricular do coração [20,21].
Os parâmetros das
análises de tempo e frequência da VFC podem ser descritos para melhor
entendimento na Tabela I e II.
Tabela
I - Parâmetros para análise no domínio do tempo.
Tabela
II - Parâmetros para análise do domínio da
frequência.
HF: Alta frequência;
LF: Baixa Frequência; VLF: Variabilidade de Baixa Frequência.
No caso de IU,
acredita-se que o SNA apresente alterações no seu funcionamento o que pode
contribuir para uma disfunção miccional, pois o trato urinário inferior é
regulado através do sistema nervoso simpático e parassimpático. Portanto,
pode-se analisar a VFC a qual permite inferir sobre a função autonômica [20] e
relacioná-la com a incontinência e continência urinária em uma amostra
específica.
A bexiga e a uretra
possuem duas funções básicas: uma como reservatório, armazenando urina sem
aumento da pressão vesical durante o enchimento; a outra, esvaziando-a
completamente durante a micção. Essas duas funções envolvem a coordenação dos
neurônios autônomos periféricos, somáticos e do sistema nervoso central (SNC).
À medida que a bexiga se enche, a atividade aferente emite informações ao SNC
até que o reflexo de micção seja ativado. Esse reflexo produz contração
detrusora simultânea ao relaxamento da uretra com diminuição da sua resistência
[1,22].
O ato da micção
compreende duas fases: armazenamento ou enchimento vesical e esvaziamento, o
que envolve funções antagônicas da bexiga e uretra. A micção e a continência
urinária estão sob a coordenação de complexos eventos neurológicos entre
sistema nervoso central e sistema nervoso periférico (SN autônomo e SN
somático), que garantem o controle voluntário do ato miccional [23].
O SNA simpático atua
principalmente na fase do armazenamento urinário, o SNA parassimpático atua na
fase do esvaziamento vesical. O sistema nervoso somático é responsável por
iniciar os mecanismos de enchimento e esvaziamento vesical com contração e o
relaxamento dos MAPs (Músculos do Assoalho Pélvico) e da musculatura estriada
da uretra, por meio do controle voluntário da micção, previamente ao
desencadeamento dos reflexos autônomos da micção [23,17].
O neurotransmissor do
SNA parassimpático é a acetilcolina, que atua principalmente nos receptores
nicotínicos, localizados na sinapse pré-ganglionar e nos receptores
muscarínicos na parede vesical. A acetilcolina produz a contração do músculo
detrusor e o relaxamento do esfíncter externo uretral. Portanto, o SNA
parassimpático atua na fase de esvaziamento vesical [23,24].
O SNA simpático pode
atuar nos receptores alfa e beta. Os
receptores alfa predominam na uretra e, quando estimulados, promovem a
contração do esfíncter externo uretral. Já o receptor beta predomina na bexiga,
quase inexistentes na uretra e, uma vez estimulados, atuam relaxando o músculo
detrusor. Portanto o SNA simpático atua principalmente na fase de armazenamento
urinário [23]. O esquema na Figura 1 ilustra o mecanismo de enchimento e
esvaziamento da bexiga.
Figura
1 - Atuação do SNA simpático e parassimpático no
enchimento e esvaziamento da bexiga.
O objetivo do
presente trabalho foi revisar a literatura a respeito da aplicação da análise
da Variabilidade da Frequência Cardíaca na Incontinência Urinária feminina.
Foi realizada uma
revisão narrativa e compreensiva de artigos científicos sobre o tema proposto.
A busca bibliográfica foi conduzida nas bibliotecas virtuais e bases de dados
da saúde (Medline, Pubmed e Bireme), no período correspondido entre março e junho
de 2014. A revisão de literatura consiste no levantamento de produções
desenvolvidas ao longo de um período de tempo, permitindo uma análise sobre
determinado assunto, chegado a conclusões próprias [25]. Na presente pesquisa,
a revisão foi escolhida a fim de elucidar questões sobre a modulação autonômica
cardíaca e incontinência urinária. Para a busca dos trabalhos os seguintes
descritores foram utilizados: Incontinência Urinária, Modulação Autonômica
Cardíaca, Sistema Nervoso Autônomo, Variabilidade da Frequência Cardíaca e os
respectivos termos em inglês “Urinary
Incontinence”, “Cardiac Autonomic Modulation”, “Autonomic Nervous System”,
“Heart Rate Variability”, além de associações entre eles. Como critérios de
inclusão foram considerados artigos científicos que contemplassem o tema
proposto, publicados em português e inglês, no período compreendido entre 2005
e 2014. Foram excluídos os trabalhos que envolvessem a Modulação Autonômica
Cardíaca associada a outras patologias e a outras circunstâncias, estudos
experimentais com animais, estudos realizados com crianças, pesquisas com
enfoque farmacológico ação/efeito do fármaco na modulação, VFC na incontinência
urinária masculina, monografias, dissertações e teses.
A
base de maior relevância para o trabalho foi a Medline, Pubmed, seguida da
Bireme. Foram encontrados 530 trabalhos, destes foram excluídos os repetidos e
os que não se encaixaram nos critérios de inclusão; após leitura crítica e
análise dos materiais foram selecionados 8
artigos.
Todos os estudos eram em idioma inglês e, não foram
encontradas pesquisas que
se enquadrassem nos critérios no idioma português. Os
artigos encontrados em
relação à modulação autonômica
cardíaca e incontinência urinária feminina
estão
apresentados no Quadro I.
Quadro
I – Modulação autonômica e IU. (ver anexo em
PDF).
De acordo com o
quadro acima, a análise da VFC pode ser utilizada como uma ferramenta para
avaliação da modulação do sistema nervoso autonômico cardíaco o qual também
reflete a função autônoma urológica. A disfunção do SNA simpático e
parasimpático, bem como o aumento da atividade parassimpática mostra estar
relacionada com a IU e com a síndrome da OAB em mulheres. A VFC mostra ser um
método não-invasivo e de baixo custo para a avaliação
clínica de mulheres com IU.
O objetivo deste
estudo foi revisar artigos científicos no contexto do modelamento da função
autonômica cardíaca na incontinência urinária feminina, sendo este assunto
pouco conhecido e pouco abordado na área da fisioterapia e demais áreas da
saúde. Consideramos que esta condição tem muita implicação na vida diária e
qualidade de vida de pessoas que sofrem desta disfunção.
De acordo com os
resultados desta revisão de literatura, foi demonstrado por Choi et al. [26] que pacientes com bexiga
hiperativa apresentam menores valores dos parâmetros da VFC, indicando alguma
doença ou desequilíbrio do SNA. Em um estudo com 65 mulheres, foi sugerido que
a atividade do SNA simpático e parassimpático é detrusor e assim, demonstrando
um desequilíbrio do SNA [29]. Outro estudo sugere que a disfunção do SNA
referentes às atividades simpática e parassimpática poderia contribuir para IUU
e hiperatividade do músculo detrusor [20].
Liao e Jaw [30]
demonstraram que a VFC mostra diferenças na atividade do SNA, algumas medições
do domínio do tempo foram significativamente inferiores no grupo de OAB. No
domínio da frequência, Total Power (ou variância, que distribui em função da
frequência), bem como a frequência muito baixa (VLF) e picos de alta frequência
(HF), as que representam atividade do parassimpático foram significativamente
diferentes nos dois grupos. Assim, mostrou-se que as diferenças na atividade
SNA em pessoas com OAB foram resultantes da hiperatividade parassimpática.
Hubeaux et al. [27] demonstram a predominância de
atividade parassimpática com a bexiga esvaziada e uma preponderância da
atividade simpática no final do enchimento da bexiga em mulheres com OAB e
Hubeaux [31] sugeriu que a disfunção do SNA simpático associada a pacientes com
OAB sem hiperatividade do músculo detrusor da bexiga.
Ben-Dror et al. [32] reportaram que a redução do
tônus simpático, o qual relaxa o músculo detrusor da bexiga e consequentemente
promove o enchimento em mulheres com OAB, pode explicar a obtenção de menores
volumes de capacidade vesical máxima e a sensação de urgência.
Em qualquer faixa
etária, a continência urinária não depende somente da integridade do trato
urinário inferior. Alterações da motivação, da destreza manual, da mobilidade,
da lucidez e a existência de doenças associadas (diabetes mellitus e
insuficiência cardíaca, entre outras) estão entre os fatores que podem ser
responsáveis pela incontinência urinária, sem que haja comprometimento
significativo do trato urinário inferior. Embora essas alterações sejam raras
nos pacientes jovens, são frequentemente encontradas no idoso e podem agravar
ou causar incontinência urinária [33].
Em
um estudo
realizado de revisão demonstrou que a VFC, em fisioterapia, tem
sido utilizada
como ferramenta para avaliação de
intervenções fisioterapêuticas, para
investigação do SNA em doenças comuns à
prática clínica e para interpretação de
condições fisiológicas. A sua
utilização é feita principalmente pela
especialidade de fisioterapia cardiorrespiratória [34]. Assim,
poucos estudos
têm-se centrado na análise da disfunção do
SNA em disfunções urológicas. As
pesquisas investigadas relatam relação direta nas
dinsfuções urológicas com as
alterações do SNA.
Através desta revisão
de literatura ficou evidente que o registro do ECG utilizado para análise da
VFC é um método não-invasivo, simples que fornece uma
medida quantitativa e qualitativa da relação entre o balanço simpático e
parassimpático [30]. Somente os oito artigos desta revisão foram suficientes
para registrar tal fato. Através da análise da VFC pode-se compreender melhor a
função do Sistema Nervoso Autônomo e sua relação com a incontinência urinária.
Estas descrições estão de acordo com os trabalhos de outros autores [28,32].
Embora existam
pesquisas que utilizam a VFC como ferramenta importante no âmbito da
fisioterapia, poucos estudos estão centrados na análise da disfunção SNA em
pacientes com IU. Através da análise da VFC procura-se entender melhor a função
do Sistema Nervoso Autonômico simpático e parassimpático na atividade urológica
feminina. A análise de VFC ainda é pouco explorada no âmbito da Fisioterapia em
Saúde da Mulher, tornando necessários estudos futuros.