Fisioter Bras 2022;2395):786-97

doi: 10.33233/fb.v23i5.5173

REVISÃO

Estado da arte e perspectivas da reabilitação cardiovascular no Brasil

State of the art and perspectives for cardiovascular rehabilitation in Brazil

 

Patricia Luciene da Costa Teixeira*, Carlos Alberto Bastos de Maria, D.Sc.**

 

*Doutoranda em Biociências pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Professora do Curso de graduação em Fisioterapia no Centro Universitário de Barra Mansa, **Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

 

Recebido em 17 de maio de 2022; Aceito em 25 de agosto de 2022.

Correspondência: Patricia Luciene da Costa Teixeira, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Instituto Biomédico, Departamento de Ciências Fisiológicas, Rua Frei Caneca 94, 20211-040 Rio de Janeiro RJ

 

Patricia Luciene da Costa Teixeira: palufelix@gmail.com

Carlos Alberto Bastos de Maria: carreb@uol.com.br

 

Resumo

Introdução: Inúmeros benefícios dos programas de reabilitação cardiovascular (PRC) já foram documentados por meio de ensaios clínicos randomizados e meta-análises. Porém, as doenças crônicas não transmissíveis, sobretudo as doenças cardiovasculares (DCV), vêm aumentando no Brasil. Existe uma grande lacuna entre o conhecimento e a recomendação desta estratégia para prevenção de DVC, uma carência de serviços de reabilitação cardiovascular (RCV) vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), uma falta de universalização do serviço em todas as esferas, bem como falta de um sistema de integração que os englobe. Objetivo: Escrutinar os motivos de a RCV ainda não ter sido universalizada pelo SUS. Métodos: Revisão narrativa realizada em sistemas de bibliotecas online e motores de busca, análise documental em sites oficiais do governo brasileiro, site do Sistema de Auditoria do SUS, manuais do Ministério da Saúde, e regulamentações revogadas citadas em legislações atualizadas. Resultados: Existem barreiras transponíveis relacionadas aos níveis do provedor e do sistema para melhor adesão dos pacientes aos PRC. Conclusão: Devem ser fomentadas ações de encaminhamento para PRC antes da alta hospitalar, melhorar a informação e o treinamento relacionado aos benefícios da RCV para profissionais da atenção primária e propor manuais de conduta para contrapor a falta de encaminhamento.

Palavras-chave: reabilitação cardíaca; prevenção cardiovascular; políticas de saúde.

 

Abstract

Introduction: Numerous benefits of cardiovascular rehabilitation programs (CRP) have already been documented through randomized clinical trials and meta-analyses. However, chronic non-communicable diseases, especially cardiovascular diseases (CVD) have been increasing in Brazil. There is a large gap between the knowledge and recommendation of this strategy for the prevention of CVD, a lack of cardiovascular rehabilitation services (CVR) linked to the Unified Health System (SUS), a lack of universalization of the service in all spheres, as well as lack of an integration system that encompasses them. Objective: To scrutinize the reasons why RCV has not yet been universalized by the SUS. Methods: Narrative review carried out in online library systems and search engines, document analysis on official Brazilian government websites, SUS Audit System website, Ministry of Health manuals, and revoked regulations cited in updated legislation. Results: There are insurmountable barriers related to provider and system levels for better patient adherence to CRP. Conclusion: Referral actions to CRP should be promoted before hospital discharge, information and training related to the benefits of CVR for primary care professionals should be improved, and conduct manuals should be proposed to counter the lack of referral.

Keywords: cardiac rehabilitation; cardiovascular prevention; health policies.

 

Introdução

 

Desde a década de 1960 a doença cardiovascular (DCV) constitui a principal causa de mortalidade no Brasil [1]. Segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), cerca de 14 milhões de brasileiros têm alguma doença no coração e cerca de 400 mil morrem por ano em decorrência dessas enfermidades, o que corresponde a 30% de todas as mortes no país [2]. O estudo Global Burden of Disease [3] mostrou que embora nos últimos anos as taxas de mortalidade por DCV tenham diminuído significativamente, o Brasil vem apresentando um aumento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como diabetes, câncer, sobretudo das doenças cardiovasculares. O infarto agudo do miocárdio (IAM) é uma das principais causas de morte súbita. Há quase seis décadas, os pacientes acometidos com IAM apresentavam grande perda da capacidade funcional, mesmo após serem submetidos ao tratamento preconizado na época, que consistia em permanecer até 60 dias de repouso no leito. Dessa forma, ao receberem alta hospitalar, se apresentavam mal condicionados fisicamente, com grandes implicações para retorno as suas atividades da vida diária (AVD) como também para retorno a algumas relacionadas às atividades instrumentais de vida diária (AIVD).

Tomando como base as grandes perdas funcionais e o descondicionamento físico apresentados pelos pacientes após a alta hospitalar resultante tanto da condição cardíaca subjacente, como do tempo de imobilização prolongada (6-8 semanas) a que os mesmos eram submetidos, os Programas de Reabilitação Cardíaca (PRC) foram então desenvolvidos com o propósito de trazer essas pessoas de volta às suas atividades diárias habituais com ênfase na prática do exercício físico supervisionado, acompanhada por ações educacionais voltadas para mudanças no estilo de vida. No período de 23 a 29 de julho de 1963 um comitê de experts em reabilitação de pacientes com doenças cardiovasculares se reuniu em Genebra na Suíça com intuito de promover um documento orientador em que os tratamentos futuros pudessem se nortear, já que os mesmos se desenvolveram em resposta aos tratamentos que envolviam o repouso prolongado [4]. Os primeiros programas de prevenção focavam em exercícios supervisionados para combater o descondicionamento após a cirurgia de bypass e para melhorar a capacidade de exercício após IAM. Posteriormente, esses programas evoluíram para atividades multidisciplinares nas quais foi incluído um componente educacional (geralmente em formato de grupo) destinado a educar os pacientes sobre a importância de reduzir os múltiplos fatores de risco, incluindo tabagismo, dieta e fatores psicossociais relacionados ao risco para saúde e/ou bem-estar [5].

Em 1992 foi criada a British Association for Cardiac Rehabilitation (BACR) e as primeiras diretrizes para reabilitação desses pacientes foram publicadas em 1995. Ainda em 1992, menos da metade de todos os hospitais Britânicos que tratavam pacientes cardíacos tinham PRC; atualmente a cifra é de 100%. Em 2010, o BACR adotou seu novo nome, British Association of Cardiovascular Prevention and Rehabilitation (BACPR), por reconhecer seu papel na prevenção cardiovascular juntamente com a reabilitação. A partir daí, a ênfase dos PRC mudou, passando a programas integrados de gestão e prevenção de doenças crônicas com objetivo de retardar a evolução da doença, prevenir eventos cardíacos futuros, bem como manter e/ou melhorar a qualidade de vida das pessoas que convivem com o fardo gerado pela DCV subjacente [6].

Nos últimos anos, além da melhora na capacidade física e funcional, inúmeros benefícios relacionados à prática regular de exercícios foram descritos, inclusive para idosos pós IAM [7]. Fraternidades médicas na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA) têm usado o termo "cardiologia preventiva" por mais de três décadas para definir essa abordagem abrangente e vários programas no Reino Unido, Canadá e Austrália mudaram sua marca para enfatizar uma abordagem mais positiva em torno da capacitação do paciente e melhora do bem-estar usando termos como: "programa de coração saudável", "ação coração”, “corações e mentes saudáveis” [6].

Nos últimos 50 anos, estudiosos do mundo inteiro já documentaram através de ensaios clínicos randomizados e meta-análises que os PRC promovem diminuição da morbimortalidade cardiovascular principalmente quando se enfatiza o exercício físico [2,8]. Entretanto, ainda há uma grande lacuna entre o conhecimento e a recomendação desta estratégia para prevenção quaternária da síndrome coronariana aguda (SCA) no Brasil; entidade nosológica caracterizada por um espectro de manifestações clínicas e laboratoriais de isquemia miocárdica aguda, sendo classificada em três formas: Angina Instável (AI), Infarto Agudo do Miocárdio (IAM) sem supradesnível do segmento ST e IAM com supradesnível do segmento ST [9].

Ressalta-se que prevenção quaternária é definida como detecção de indivíduos em risco de tratamento excessivo para protegê-los de novas intervenções médicas inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis [10,11]. Partindo desta premissa, o objetivo deste trabalho foi escrutinar o motivo da Reabilitação Cardiovascular (RCV) ainda não ter sido universalizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Métodos

 

Tratou-se de uma revisão narrativa para analisar o processo de implantação e implementação da RCV no Brasil, uma vez que pesquisas dessa natureza no exame de perspectivas, multiplicidade e pluralidade de enfoques possibilita inferir indicadores para esclarecer e resolver as problemáticas históricas [12].

Optou-se por um estudo qualitativo a fim de melhor captar as nuances desse processo, já que existe uma carência de estudos relacionados ao assunto. Inicialmente foi adotado o delineamento metodológico de revisão narrativa da literatura, a qual busca sintetizar resultados amplos obtidos em pesquisas já realizadas sobre o tema, com seleção arbitraria dos artigos.

Ao conduzir a pesquisa, os autores obtiveram artigos referenciados em bancos de dados pessoais, de artigos de periódicos e relatórios encontrados principalmente em sistemas de bibliotecas online e motores de busca, como Pubmed, Medical Literature Analysis and RetrievalSistem Online (Medline), Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Biblioteca virtual em saúde (BVS), Periódicos CAPES, Scielo, Cochrane Library Scopus e Web of Science.

Também foi realizada uma análise documental em sites oficiais do governo brasileiro como o do MS, assembleias e portais legislativos, Diário Oficial da União, sites relacionados à pessoa com deficiência, site do Sistema de Auditoria do SUS, manuais do MS, e regulamentações revogadas citadas em legislações mais atuais. Estudos de qualquer desenho metodológico foram considerados para inclusão nesta pesquisa (ou seja, métodos quantitativos, qualitativos e mistos). Não compuseram a atual pesquisa estudos piloto e de relato de caso, e estudos publicados em outro idioma que não inglês, português ou espanhol.

Os descritores para a elaboração das estratégias de busca foram selecionados no MeSH e no DeCs, sendo utilizada como estratégia de busca a estrutura PICO [S] sem referência a um termo Comparador específico: População – “Doenças Cardiovasculares”; Intervenção – “Reabilitação cardíaca” ou “Reabilitação cardiovascular” ou ainda “Prevenção cardiovascular” Outcomes – custos, anos de vida, qualidade de vida, custo-efetividade; S projeto de estudo - “Política de Saúde”, “SUS” ou “Sistema Único de Saúde”, “Brasil” ou “Brasileiro” e “História”. 

Os autores também incluíram outros artigos encontrados nas referências dos artigos pesquisados ou outros de que tivessem conhecimento em suas áreas de especialidade, caso os estudos atendessem aos critérios acima mencionados. A experiência dos autores em conduzir pesquisas no Brasil, a maior facilidade na obtenção de dados e a necessidade patente em aprofundar a análise de como o SUS tem respondido ao aumento da demanda imposta pelo aumento das DCNT e de como os desafios sistêmicos podem estar afetando o encaminhamento para a RCV, fizeram com que o Brasil fosse escolhido como objeto da pesquisa. Escopo: o sistema público de saúde brasileiro em seu contexto mais abrangente (p. ex: infraestrutura geral).

Como os dados utilizados para este trabalho estavam disponíveis exclusivamente nas bibliotecas virtuais e / ou físicas, optou-se pela não realização de entrevistas com trabalhadores e/ou usuários do SUS. Consequentemente, não sendo necessária aprovação ética para condução da mesma.

 

Resultados e discussão

 

A saúde é um direito assegurado pelo governo a todos os cidadãos brasileiros desde a constituição de 1988. A implantação do SUS estabeleceu um marco neste cenário, pois foi concebida de maneira integral, preventiva e curativa [13]. Apesar de novas leis e portarias terem sido criadas pelo MS com intuito de garantir o financiamento e a regularização de diversos pontos dessa política, esta prerrogativa é relativamente recente levando em consideração a história do nosso país. Todos os materiais utilizados neste artigo foram revisados com foco na história do direito à saúde e na reabilitação cardíaca, tendo como início do recorte temporal a década de 1960.

Até o final da década de 1980, os serviços de reabilitação, que começaram a ser implantados na década de 1960, somente prestavam assistência aos cidadãos com vínculo formal trabalhista vinculado ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência (INAMPS), e os serviços filantrópicos que atendiam as pessoas com deficiência do Brasil [14]. As primeiras legislações relacionadas aos serviços de reabilitação foram oficialmente publicadas entre os anos de 1989 a 2015, sendo a maior parte voltada para pessoas com deficiência (PcD) para ordenar e organizar as ações e os serviços oferecidos às mesmas [15]. Apesar de a reabilitação ter sido abarcada pela Política de Saúde, e pelas diretrizes mundiais vigentes, ela permanece diluída em normativas de diferentes subáreas no país. Isso nos leva a crer que o impacto sociopolítico e econômico que a guerra fria instaurou, repercutindo em grandes desigualdades de acesso às políticas públicas pelas classes sociais menos privilegiadas que não detinham conhecimento sobre seus direitos, reverbera até os dias atuais. O maior número de legislações relacionadas aos serviços de reabilitação está associado à PcD, os demais serviços vinculados às subáreas da saúde são de caráter pontual, seletivo sem rede de atendimento própria.

A reabilitação é definida e organizada por normatizações criadas a partir de diversas áreas técnicas do MS, que dispõem de políticas específicas como a da PcD, do Idoso, de Trauma e Violência, e também do Trabalhador. Por outro lado, até a atualidade, os serviços de reabilitação ainda não possuem legislações, orçamentos e aparatos organizacionais próprios sendo dependente da administração federal e consequentemente da organização centralizada [15]. Destaque deve ser dado para a segunda versão da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID) que retirou o foco das incapacidades e limitações passando enfatizar os contextos ambientais e as potencialidades do indivíduo, reabilitando-o verdadeiramente. Todas as PcD, independente da natureza, agente causal ou grau de severidade (Decreto nº 3298/1999) assim como aqueles com doenças crônicas que resultassem em desvantagem ou incapacidade (Portaria MS/GM nº 1060/2002) seriam beneficiários dos processos de reabilitação [16]. Cabe ao MS instituir e coordenar a Política Nacional de Saúde (PNS) definindo as bases comuns a todo o território nacional e induzindo outros entes da federação a implementarem serviços que integrem a rede de saúde.

Infelizmente, não existe uma política específica de reabilitação, e os serviços estão normatizados, de forma pulverizada, em várias subáreas da saúde. Ou seja, a oferta de serviços de reabilitação é diretamente dependente dos aspectos institucionais que os regem, como a existência de aparato legal, definição de repasses orçamentários e definição estrutural. Apesar de muitos municípios terem avançado na garantia do direito universal e integral à saúde, essa não é a realidade em todo território nacional, ou seja, ainda existe um longo caminho a ser trilhado. Pesquisas realizadas sobre cenários futuros sugerem a urgente necessidade de abordar desigualdades geográficas persistentes, financiamento insuficiente, e colaboração insuficiente entre o setor privado e o setor público [17]. Cabe ressaltar que de acordo com informações dos órgãos do governo federal (2021), apenas 66 municípios brasileiros possuem mais de 500 mil habitantes, destes 3.770 possuem menos de 20 mil habitantes, ou seja, a cada três, dois são de baixa densidade correspondendo a 67,7% do total. Este número é importante, já que é amplamente conhecido que hierarquia urbana determina a estrutura econômica em diversas escalas de organização.

A taxa de mortalidade por doenças cardiovasculares no mundo apresentou redução importante nas últimas décadas, tendo sido relacionada a avanços na prevenção primária e no tratamento da SCA. Embora essa redução seja tendência mundial, ainda é mais prevalente em países desenvolvidos. No Brasil o número total de mortes por DCV aumentou, talvez como resultado do crescimento e envelhecimento populacional reforçando que a linha de cuidado é essencial. A elevada taxa de mortalidade no sistema público de saúde brasileiro é atribuída à dificuldade no acesso do paciente com IAM ao tratamento em terapia intensiva, aos métodos de reperfusão e às medidas terapêuticas estabelecidas para o IAM como os PRC. O Global Burden of Disease [3] ressalta que esse novo perfil de saúde-doença necessita de uma renovada atenção à saúde e uma política nacional de saúde que busque utilizar novas métricas do nível de saúde da população, informando e avaliando o cuidado em saúde, testando, construindo e agregando conceitos e métricas ainda não aplicados na gestão da saúde no SUS nos mais diversos níveis.

Por outro lado, a reabilitação já foi incorporada ao SUS há décadas, porém ainda não existem serviços de RCV na maioria dos centros de Reabilitação, de forma que urge a necessidade de uniformização no atendimento destes indivíduos. Destaque deve ser dado a política de saúde inglesa que em 1992 tinha menos da metade de todos os hospitais britânicos tratando pacientes cardíacos no PRC; atualmente a cifra é de 100% [6]. Cabe ressaltar ainda que, fraternidades médicas na Europa e nos Estados Unidos da América têm usado o termo "cardiologia preventiva" por mais de três décadas para definir essa abordagem abrangente, e vários programas no Reino Unido, Canadá e Austrália mudaram sua marca para enfatizar uma abordagem mais positiva em torno da capacitação do paciente e melhora do bem-estar usando termos como: “programa de coração saudável”, “ação coração”, “corações e mentes saudáveis?” [6].

Ao longo dos anos, as legislações tendem a ser influenciadas por recomendações técnicas e organizacionais estabelecidas pelas diretrizes mundiais. Desta forma, por meio de ações e de uma série de atos legais o MS vem tentado viabilizar, um modelo assistencial pautado por abordagem multiprofissional e multidisciplinar, com ênfase nas ações de promoção à saúde, na reabilitação e na inclusão social. Uma estratégia importante com evidências para redução da morbimortalidade é a implementação de PRC nos municípios brasileiros com alta prevalência de DCV, capacitando e motivando as equipes das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) para que passem a divulgar o fluxo e os potenciais benefícios da implantação da linha de cuidado do IAM, uma doença silenciosa que mata em média 114 mil brasileiros por ano. A cada hora pelo menos 13 pessoas morrem, não obstante, apesar das recomendações internacionais, a implementação efetiva da RC após SCA, RVM e/ou IC permanece baixa. No Brasil, estes serviços infelizmente continuam sendo subutilizados, necessitando a realização de estudos pormenorizados, como os iniciados em Portugal em 1998 [18] com o objetivo de conhecer a realidade da RC no nosso país e analisar a sua evolução. Sem dúvida a qualidade do PRC no que tange a segurança do paciente, o conhecimento dos programas disponíveis (cobertura pelo plano de saúde), processos e normas, são fatores que podem influenciar o encaminhamento dos pacientes com indicação para RCV.

Uma pesquisa sobre percepções sobre as barreiras para acesso a RC em duas cidades no sul do Brasil demonstrou que os indivíduos que não realizam a RC não o fazem principalmente por não terem conhecimento sobre RC e perceberem que seus médicos não a consideravam necessário. Essa informação levanta a questão de quão familiares os médicos estão com a RC no Brasil em termos de sua natureza, benefícios e disponibilidade de programas locais [19,20]. Embora um número limitado de estudos tenha sido identificado mundialmente, os dados compilados sugerem que existem barreiras transponíveis relacionadas aos níveis do provedor e do sistema para melhor adesão dos pacientes aos PRC. Por outro lado, as barreiras que afetam a adesão ao PRC foram: falta de conhecimento por parte do usuário e do médico, idade avançada do paciente, disponibilidade e maior divulgação dos serviços. Essa importante lacuna deve ser veementemente combatida através de PRC padronizados.

Nossa experiência demonstra que a maioria dos pacientes se perde justamente no momento de transição entre a fase 1 (hospitalar) para 2 (ambulatorial), uma vez que ao ter alta hospitalar não são encaminhados para RCV. Desta forma, eles iniciam a RCV tardiamente, só após liberação por “poucos médicos cardiologistas” que realizam o acompanhamento ambulatorial e que na maior parte das vezes não acompanharam seus pacientes durante a internação.

A partir do diagnóstico médico e da estabilização hemodinâmica, o fisioterapeuta inicia os cuidados no processo de recuperação do paciente, ou seja, ainda na fase 1 da RCV. A avaliação do movimento e do status funcional é crucial para prescrição do exercício que é considerado um tratamento não farmacológico. Quem prescreve a frequência, intensidade e duração do exercício é o fisioterapeuta, portanto, este deve ser considerado um dos profissionais-chave no processo de encaminhamento. Apesar de dados robustos sobre a fisioterapia estar integrada às várias disciplinas que trabalham com objetivos que integram os PRC, há carência de estudos que incluam este profissional como componente potencialmente forte e co-responsável para educar, encorajar, facilitar e encaminhar o paciente para RC ambulatorial assim que o mesmo receber alta hospitalar.

A revisão de estudos randomizados para promover a aceitação e adesão de pacientes aos PRC publicada pela Cochrane [21] identificou um estudo bem-sucedido, em que os enfermeiros integrados às práticas médicas gerais foram bem-sucedidos em garantir um ótimo uso da RC. Isso também pode servir como uma estratégia apropriada para as lacunas de encaminhamento feitos pelos próprios fisioterapeutas, profissionais prescritores de exercício físico integrantes da equipe multiprofissional que acompanham e tratam esses indivíduos desde a internação até a alta hospitalar.

Indivíduos com alto risco podem necessitar de atendimento médico imediato ou em curto prazo (reinternação, intervenções ou ajustes de fármacos). Tal fato também pode corroborar a falta de encaminhamento imediato para fase 2, pois nestes casos o monitoramento do treinamento pela equipe demanda maior atenção na identificação de sinais e sintomas de risco para atuação imediata no atendimento de intercorrências clínicas, inclusive com material de suporte básico e avançado de vida, com cardiodesfibrilador manual ou automático. Destaca-se neste ponto que a Resolução Nº 501, de 26 de dezembro de 2018 em seu artigo 1 “reconhece a atuação do Fisioterapeuta na assistência à Saúde nas Unidades de Emergência e Urgência, sendo necessário e preconizado que tais profissionais sejam capacitados em Suporte Básico de Vida e, especialmente, em Suporte Avançado de Vida Cardiovascular em Adultos – ACLS” [22]. Contudo, cabe um melhor entendimento sobre barreiras e facilitadores para que mudanças políticas possam acontecer de forma que os pacientes possam aderir a estes programas. 

 

Conclusão

 

Este estudo destacou a interação complexa entre indivíduos, provedores e o sistema de saúde na adesão aos PRC. Os esforços para mudar os comportamentos de todos os envolvidos devem considerar cuidadosamente todos os fatores descritos para serem bem-sucedidos. Uma vez que o termo “reabilitação” pode assumir alguns sentidos conotativos, pois remonta a ideia de recuperação de alguma dependência, passando a noção estereotipada do indivíduo ou, ainda, pessoas com outras manifestações não cardíacas de DCV, sugere-se que sejam utilizados termos que possam ressaltar uma abordagem com enfoque multidisciplinar voltado especificamente para abordagens cardiovasculares como “programa multidisciplinar para saúde cardiovascular”. Para maximizar a captação, otimização da adesão a esses programas e a prevenção secundária, o endosso por parte da classe médica sobre a importância da reabilitação cardíaca é mandatório.

O encaminhamento dos indivíduos para RC após um diagnóstico recente de doença cardíaca coronária ou insuficiência cardíaca deve ser realizado não apenas pelo cardiologista no ambulatório, mas ainda no ambiente hospitalar antes da alta. Esta responsabilidade deve ser também do fisioterapeuta que participa da equipe. Para tal, torna-se de vital importância maximizar a comunicação entre os especialistas para garantir que o encaminhamento seja realizado e que seja feito de maneira mais precoce, bem como ações adicionais para otimizar a informação e o treinamento sobre os benefícios dos PRC para profissionais da atenção primária que tratam de pacientes cardíacos em relação ao papel vital da RC no atendimento ambulatorial. Manuais de conduta podem ser eficazes para contrapor a falta de encaminhamento.

Contudo, os profissionais de saúde precisam estar mais envolvidos, acolhendo os pacientes e agregando informação sobre os benefícios dos exercícios nos PRC de forma a motivar a participação e continuidade. Urge uma mudança de paradigmas para que afete positivamente a participação destes pacientes nos PRC. Esses achados abrem luz para futuras pesquisas e propostas para planos que visem a criação e acompanhamento das metas a serem estabelecidas, a fim de, efetivamente, implementarem estes programas nos diferentes níveis de atenção à saúde.

 

Conflitos de interesses

Os autores declaram não haver conflitos de interesses.

 

Fonte de financiamento

Financiamento próprio

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenvolvimento, Desenho metodológico, Coleta e tratamento dos dados, Redação e interpretação dos dados: Teixeira PLC; Supervisão, Revisão crítica, Interpretação dos dados e redação: Maria CAB

Referências

 

  1. Ribeiro ALP, Duncan BB, Brant LCC, Lotufo PA, Mill JG, Barreto SM. Cardiovascular health in Brazil: trends and perspectives. Circulation 2016;133(4):422-33. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.114.008727 [Crossref]
  2. Carvalho T, Milani M, Ferraz AS, Silveira AD, Herdy AH, Hossri CAC, et al. Diretriz Brasileira de Reabilitação Cardiovascular 2020. Arq Bras Cardiol 2020;114(5):943-87. doi: 10.36660/abc.20200407 [Crossref]
  3. GBD 2016 Brazil Collaborators. Burden of disease in Brazil, 1990-2016: a systematic subnational analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Lancet 2018;392(10149):760-75. doi: 10.1016/S0140-6736(18)31221-2 [Crossref]
  4. WHO Expert Committee on Rehabilitation of Patients with Cardiovascular Diseases & World Health Organization. Geneva: World Health Organization, 1964. [Internet] [cited 2022 March 12]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/40577
  5. Thompson DR, De Bono DP. How valuable is cardiac rehabilitation and who should get it? Heart 1999;82:545-46. doi: 10.1136/hrt.82.5.545 [Crossref]
  6. Jones J, Bukley J, Furzze G, Sheppard G. Cardiovascular prevention and rehabilitation in practice. 2ª ed. E-book. Wiley Blackwell, 2020.
  7. Sanchis J, Sastre C, Ruescas A, Ruiz V, Valero E, Bonanad C, et al. Randomized comparison of exercise intervention versus usual care in older adult patients with frailty after acute myocardial infarction. Am J Med 2021;134(3):383-90.e2. doi: 10.1016/j.amjmed.2020.09.019 [Crossref]
  8. Mendes M. Reabilitação cardíaca após enfarte do miocárdio: uma intervenção fundamental, pouco praticada em Portugal. Rev Port Cardiol 2013;32(3):201-3. doi: 10.1016/j.repc.2013.01.002 [Crossref]
  9. Bassan R, Bassan F. Abordagem da síndrome coronariana aguda. Revista da Sociedade de Cardiologia do Rio Grande do Sul [Internet] 2006 [cited 2022 Aug 9];15(7). http://sociedades.cardiol.br/sbc-rs/revista/2006/07/Artigo03.pdf
  10. Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública 2009;25(9):2012-20. doi: 10.1590/S0102-311X2009000900015 [Crossref]
  11. Norman AH, Tesser CD. Prevenção quaternária: as bases para sua operacionalização na relação médico-paciente. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015;10(35):1-10. doi: 10.5712/rbmfc10(35)1011 [Crossref]
  12. Soares MB, Maciel FP. Alfabetização. Brasília: MEC; Inep; Comped, 2000. (Estado do Conhecimento, n. 1) [online]. [cited 2022 Aug 30]. Available from: http://www.capes.gov.br/servicos/banco-de-teses
  13. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 16 ed. Organização de Alexandre de Moraes. São Paulo: Atlas; 2000.
  14. Menicucci TMG. História da reforma sanitária brasileira e do Sistema Único de Saúde: mudanças, continuidades e a agenda atual. Hist Cienc Saude-Manguinhos 2014;1(1):77-92. doi: 10.1590/S0104-59702014000100004 [Crossref]
  15. Caetano LA, Sampaio RF, Costa LA. A expansão dos serviços de reabilitação no SUS à luz do arcabouço normativo federal. Rev Ter Ocup Univ Sao Paulo 2018;29(3):195-203. doi: 10.11606/issn.2238-6149.v29i3p195-203 [Crossref]
  16. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no 2.048/GM/MS de 5 de novembro de 2002. Aprova o regulamento técnico dos sistemas estaduais de urgência e emergência. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2002 [Internet]. [cited 2021 Oct 11]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt2048_05_11_2002.html
  17. Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo 2018;29(3):195-203. doi: 10.11606/issn.2238-6149.v29i3p195-203 [Crossref]
  18. Silveira C, Abreu A. Reabilitação cardíaca em Portugal. Inquérito 2013-2014. Rev Port Cardiol 2016;35(12):659-68. doi: 10.1016/j.repc.2016.06.006 [Crossref]
  19. Ghisi GL, Santos RZ, Aranha EE, Nunes AD, Oh P, Benetti M, Grace SL. Perceptions of barriers to cardiac rehabilitation use in Brazil. Vasc Health Risk Manag 2013;9:485-91. doi: 10.2147/VHRM.S48213 [Crossref]
  20. Ghisi GL, Polyzotis P, Oh P, Pakosh M, Grace SL. Physician factors affecting cardiac rehabilitation referral and patient enrollment: a systematic review. Clin Cardiol 2013;36(6):323-35. doi: 10.1002/clc.22126 [Crossref]
  21. Davies P, Taylor F, Beswick A, Martins N, Ebrahim S. Promoting patient uptake and adherence in cardiac rehabilitation. Cochrane Database Syst Rev 2010;(7):CD007131. doi: 10.1002/14651858.CD007131.pub3 [Crossref]
  22. Brasil. Conselho de Federal de Fisioterapia e Terapia ocupacional. Resolução nº 501, de 26 de dezembro de 2018. Reconhece a atuação do Fisioterapeuta na assistência à Saúde nas Unidades de Emergência e Urgência. [Internet] [cited 2022 Aug 20]. Available from: https://www.coffito.gov.br/nsite/?p=10570