Fisioter Bras.
2023;24:(4):462-78
REVISÃO
Aplicabilidade
do teste de Gillet: uma revisão de escopo
Applicability of Gillet test: a scoping review
Frederico
de Oliveira Meirelles1, Flavia Mazzoli-Rocha2
1Universidade Estácio de Sá, Rio de
Janeiro, RJ Brasil
2Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ,
Brasil
Recebido
em: 12 de julho de 2022; Aceito em: 7 de julho de 2023.
Correspondência: Frederico de Oliveira Meirelles, fredericomeirelles@hotmail.com
Como citar
Meirelles FO, Mazzoli-Rocha F. Aplicabilidade do teste de Gillet: uma revisão de escopo. Fisioter
Bras. 2023;24(4):462-78. doi:10.33233/fb.v24i4.5219
Resumo
Introdução: Ferramentas para avaliação de
mobilidade articular são importantes para auxiliar os terapeutas manuais a
serem mais assertivos em suas condutas clínicas. O teste de Gillet
é uma ferramenta utilizada rotineiramente por profissionais e sua utilidade
ainda é motivo de discussão. Objetivo: Investigar os tipos de evidências
científicas sobre o teste de Gillet e analisar as
lacunas existentes na literatura. Métodos: Foi realizada uma busca nas
bases de dados Medline/Pubmed, PEDro
e Scielo. Não houve restrição em relação ao tipo de
estudo ou características da amostra. Em cada estudo foram analisados os dados:
desenho do estudo, objetivos, população alvo, tratamento realizado, resultados
encontrados, conclusão do estudo, propósito e condições de saúde. Após triagem
foram selecionados 22 estudos, sendo a maioria com o desenho de estudo de
acurácia diagnóstica seguido por estudos observacionais, estudos
quase-experimentais, estudos controlados randomizados, revisão sistemática com metanálise de estudos de acurácia diagnóstica e estudo de
validação de escala diagnóstica, respectivamente. Resultados: De acordo com
o propósito do estudo, os maiores quantitativos encontrados foram de estudos de
confiabilidade do teste de Gillet, em seguida estudos
em que o teste de Gillet era utilizado como
ferramenta de mensuração de desfechos, estudo de revisão de literatura com metanálise e estudo em que o teste de Gillet
foi utilizado, entre outros testes, para compor a validação de uma escala
diagnóstica. Como característica das amostras dos estudos, foram encontradas
majoritariamente participantes saudáveis, seguido por indivíduos com lombalgia
crônica, disfunção sacroilíaca, incontinência
urinária de esforço, amputados, gestantes e participantes com dor sacroilíaca. Conclusão: O teste de Gillet apresenta baixa confiabilidade interexaminador,
não devendo ser considerado para o uso em estudos científicos como ferramenta
de mensuração do desfecho movimento. Sua utilidade clínica é contestável e, por
isso, seu uso deve ser coerente com a experiência do profissional e acompanhado
de outros testes confiáveis.
Palavras-chave: articulação sacroilíaca;
manipulações musculoesqueléticas; percepção de movimento; fenômenos
biomecânicos.
Abstract
Introduction: Tools for
assessing joint mobility are important to help manual therapists to be more
assertive in their clinical behavior. Gillet's test is a tool routinely used by
professionals and its usefulness is still a matter of debate. The aim of this
work was to investigate the types of scientific evidence on the Gillet’s test
and analyze the gaps in the literature. Methods: A search was performed
in the Medline/Pubmed, PEDro
and Scielo databases. There were no restrictions
regarding the type of study or sample characteristics. In each study, data were
analyzed: study design, objectives, target population, treatment performed,
results found, study conclusion, purpose, and health conditions. After
screening, 22 studies were selected, the majority with the diagnostic accuracy
study design followed by observational studies, quasi-experimental studies,
randomized controlled studies, systematic review with meta-analysis of
diagnostic accuracy studies and diagnostic scale validation study,
respectively. Results: According to the purpose of the study, the
highest quantitative found were from studies on the reliability of the Gillet
test, followed by studies in which the Gillet’s test was used as an outcome
measurement tool, a literature review study with meta-analysis, and a study in
that the Gillet’s test was used, among other tests, to compose the validation
of a diagnostic scale. As a characteristic of the study samples, mostly healthy
participants were found, followed by individuals with chronic low back pain,
sacroiliac dysfunction, stress urinary incontinence, amputees, pregnant and
participants with sacroiliac pain. Conclusion: The Gillet’s test has low
inter-examiner reliability and should not be considered for use in scientific
studies as a tool to measure the movement outcome. Its clinical utility is
debatable and, therefore, its use must be consistent with the professional's
experience and accompanied by other reliable tests.
Keywords: sacroiliac
joint; musculoskeletal manipulations;
motion perception; biomechanical phenomena.
A
lombalgia representa a maior causa de incapacidade no mundo e gera
custos
anuais de bilhões de dólares dos serviços
públicos de saúde [1]. Em indivíduos
com lombalgia, 13 a 30% das reclamações estão
relacionadas à articulação sacro-ilíaca
[2]. Essa articulação, apesar de ter pequena mobilidade,
possui grande
importância na biomecânica lombopélvica e de membros
inferiores [3], sendo de suma importância identificar o melhor teste para
avaliar sua mobilidade.
Para
a articulação sacro-ilíaca, os fisioterapeutas que trabalham com terapias
manuais geralmente utilizam 3 tipos de testes: testes de posição, que objetivam
buscar assimetrias ósseas; testes provocativos, que buscam reproduzir os
sintomas; e testes de mobilidade, que servem para verificar os déficits de
movimento articular [4]. O teste de Gillet, também
conhecido por Standing Hip Flexion Test (SHFT) ou Rücklauf
test, representa um dos testes mais utilizados na
prática de saúde e em pesquisas clínicas, tanto para fins de avaliação da
mobilidade sacrilíaca, como para mensuração do desfecho mobilidade. E, apesar
de a literatura se mostrar controversa em relação à acurácia, o teste de Gillet apresenta boa difusão e aplicação rotineira na
prática clínica [5,6]. O teste de Gillet é realizado
com o indivíduo a ser avaliado ficando de pé em frente a uma parede onde se é
solicitado que coloque as mãos. O avaliador encosta os seus polegares na
espinha ilíaca póstero-superior em um lado e sobre a base sacra do lado ipsilateral. Solicita-se que o indivíduo flexione o quadril
e o joelho. Se o polegar localizado no ilíaco direito não descer quando ocorrer
a retroversão do ilíaco, indica uma restrição de mobilidade do ilíaco. Pede-se,
então, uma flexão do membro do lado oposto. Se o polegar posicionado no sacro
não descer, significa que existe uma restrição de mobilidade na base do osso
sacro [7].
Testes
de diagnóstico que avaliam a mobilidade articular são bastante usuais na
prática clínica de profissionais osteopatas e terapeutas manuais. Apesar de
serem utilizados em larga escala por estes profissionais, a literatura sobre
este tema é controversa e pouco confiável [8]. Para realizar um processo
diagnóstico de qualidade, os profissionais de saúde necessitam de testes
válidos, confiáveis e que gerem dados acurados e interpretáveis para uso na
prática clínica [9]. Considerando que o teste de Gillet
tem aplicação rotineira na prática clínica e vem sendo usado em pesquisas
clínicas, a presente revisão de escopo teve o intuito de:
Foi
realizada uma revisão de escopo baseada nas recomendações Preferred
Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR)
[10]. Esta revisão teve o intuito de identificar produção científica relevante
e lacunas de conhecimento, relacionadas ao seguinte questionamento: O teste de Gillet é uma ferramenta útil para analisar a mobilidade da
articulação sacro-ilíaca?
Os
critérios de elegibilidade relacionados aos participantes, intervenções,
desfechos e tipo de estudo foram baseados na sigla PICOS, conforme Tabela I.
Tabela
I – Sigla e
descrição dos critérios de elegibilidade dos estudos para esta revisão
Fonte:
O autor
O
autor da revisão conduziu as buscas eletrônicas para identificar estudos nas
bases de dados Medline/Pubmed, Physiotherapy
Evidence Database (PEDro) e Scientific Electronic Library Online (Scielo).
O autor da revisão conduziu inicialmente nas bases Descritores em Ciências da
Saúde (DeCS) (disponível em:
https://decs.bvsalud.org/en/) e no Medical Subject Headings (MeSH) (disponível em
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/mesh/) busca por termos descritores que se
relacionam com a estratégia do acrônimo PICOS, não sendo encontrados
descritores relacionados com o tema em questão. Por conseguinte, a escolha dos
descritores foi relacionada a experiência do autor, que selecionou os seguintes
termos: “Gillet test”, “Gillet Sacroiliac”, “Test Gillet”, “Standing Hip Flexion Test”, “SHFT” e "Rücklauf
test". A frase de busca foi realizada com os
operadores booleanos “OR” entre sinônimos e “AND” entre os descritores. Um
filtro de pesquisa sensível para idioma (português, inglês e espanhol) foi
aplicado ao Medline/Pubmed e Scielo,
não sendo possível na base PEDro. Por fim, foi
utilizada a técnica de bola-de-neve, na qual as listas de referências dos
estudos primários selecionados e os artigos de revisão também foram rastreadas
manualmente para buscar referências adicionais.
Foram
critérios de exclusão para esta pesquisa: estudos qualitativos, protocolos de
pesquisa, teses / dissertações, resumos, cartas ao editor, notícias, estudos de
caso, capítulos de livros, diretrizes, artigos de posição e trabalhos não
publicados.
Inclusão
e análise qualitativa dos artigos
Após
busca inicial, foram identificados 36 artigos nas bases de dados Medline/Pubmed (27), PEDro (7) e Scielo (2). Adicionalmente, 8 estudos foram identificados
por meio de rastreio manual em referências adicionais. Em seguida, foi feita a
exclusão de 2 artigos por motivo de duplicata. Após aplicação dos critérios de
elegibilidade, feita através de análise de título e resumo, 17 artigos foram
excluídos, por não fazerem parte do tema, totalizando 25 artigos para a leitura
completa. Após a leitura completa dos estudos, 3 artigos foram excluídos por
não analisarem o teste de Gillet. No total, 22
artigos foram selecionados para compor a revisão qualitativa, de acordo com o
fluxograma abaixo (Figura 1).
Figura
1 – Fluxograma
Prisma [10]
Na
Tabela II, é possível encontrar todos os artigos incluídos, bem como as
informações mais relevantes de cada estudo.
Tabela
II – Resultados dos
artigos incluídos nesta revisão
Análise
dos desenhos de estudo
Dos
estudos incluídos nessa revisão de escopo: 11 tiveram o desenho de estudo de
acurácia diagnóstica; 5 estudos observacionais; 2 estudos quase-experimentais;
2 estudos controlados randomizados; 1 revisão sistemática com metanálise de estudos de acurácia diagnóstica e 1 estudo de
validação de escala diagnóstica (Figura 2).
Fonte:
O autor
Figura
2 – Tipos de estudo
sobre o tema encontrados na literatura
Análise
do propósito do estudo
De
acordo com o propósito do estudo, esta revisão de escopo encontrou quatro
grandes linhas de objetivos. O maior quantitativo encontrado foi de estudos de
confiabilidade do teste de Gillet, em seguida estudos
em que o teste de Gillet era utilizado como
ferramenta de mensuração de desfechos. Também foi encontrado um estudo de
revisão de literatura com metanálise, em que o teste
de Gillet foi um dos testes avaliados entre outros
para análise de mobilidade de sacro-ilíaca, e um estudo em que o teste de Gillet foi utilizado, entre outros testes, para compor a
validação de uma escala diagnóstica (Figura 3).
Fonte:
O autor
Figura
3 – Propósito do
estudo
Análise
das condições de saúde
Pelas
condições de saúde das amostras dos estudos, foi verificado que a
característica da maior parte foi composta por participantes saudáveis, seguido
por indivíduos com lombalgia crônica. Disfunção sacro-ilíaca aparece como a
terceira maior condição de saúde das amostras, seguida pela incontinência
urinária de esforço, amputados, gestantes e participantes com dor sacro-ilíaca
(Figura 4).
Fonte:
O autor
Figura
4 – Condições de
saúde
Essa
revisão de escopo teve como objetivo principal verificar as lacunas existentes
na literatura científica e, ainda, analisar os tipos de evidências que podem
respaldar o uso do teste de Gillet na prática
clínica. Nos 22 estudos incluídos nessa revisão, se torna claro que a maioria
dos estudos publicados (11) tem o desenho direcionado para a análise da
confiabilidade do teste de Gillet.
Nos
estudos de acurácia presentes nessa análise, a confiabilidade interexaminador encontrada foi de fraca a moderada para o
teste de Gillet, quando usado para avaliar movimentos
da articulação sacro-ilíaca, com os valores Kappa variando entre 0,01 e 0,41.
Na análise intraexaminador, a confiabilidade variou
de 0,05 e 0,70 caracterizando um nível moderado a forte. Estudos que não
utilizaram o índice Kappa encontraram valores de concordância interexaminador entre 64% e 47% [26].
A
maioria dos estudos presentes nesta revisão de escopo direciona a resultados
considerados pobres para a análise da confiabilidade de um teste. Os resultados
encontrados nesta revisão de escopo convergem com a maior parte da literatura
pregressa sobre o tema. De acordo com os autores de uma revisão sistemática
sobre testes de mobilidade da articulação sacro-ilíaca, publicada recentemente,
o teste de Gillet tem baixa a moderada confiabilidade
e, por isso, novos estudos devem ser estimulados para clarificar o entendimento
sobre este teste [4]. Vale mencionar que alguns estudos concluem que o teste de
Gillet é uma ferramenta útil na avaliação da
mobilidade sacro-ilíaca, apesar de apresentar moderada confiabilidade intraexaminador com índice Kappa 0,70 e pobre resultado na
avaliação intraexaminador de 0,1 a 0,2 [15]. Da mesma
maneira, Carmichael [17] conclui que o teste é
confiável e deve ser estimulado, apesar de apresentar um índice Kappa fraco
para confiabilidade interexaminador.
Falando
sobre as condições de saúde, a amostra dos estudos foi bastante heterogênea,
composta por indivíduos saudáveis, com dor lombar crônica, com disfunção sacro-ilíaca,
incontinência urinária de esforço ou dor lombossacral,
ou ainda por jogadores de futebol amputados, atletas de corrida e gestantes.
Tal fato representa um fator limitante na extrapolação dos resultados
encontrados. Além disso, a relação entre dor e mobilidade sacro-ilíaca
dificulta a escolha correta do desfecho. Estudos tendem a relacionar a
mobilidade sacro-ilíaca com a dor na região [30], mas o foco deveria ser apenas
a mobilidade da articulação sacro-ilíaca. Sabemos, atualmente, que a dor é um
sintoma complexo, sendo influenciada por diversos fatores [31]. Relacionar a
dor somente à alteração mecânica local é algo abundantemente discutido na
literatura e o caminho parece seguir em outra direção, com diversos fatores
difusos e intrincados que interagem entre si, dificultando as análises
monotemáticas [32].
Adicionalmente,
alguns estudos incluídos na revisão utilizaram o teste de Gillet
para mensuração do desfecho mobilidade em ensaios clínicos [12,21,23,25], mesmo
com o teste tendo a sua validade e confiabilidade bastante discutidas
[4,6,7,18,26]. Este dado somente reforça que os resultados destes estudos não
devem ser levados em consideração, pois se baseiam em uma ferramenta com baixa
confiabilidade. Esta estratégia de mensuração de desfechos com o teste de Gillet não deveria ser considerada, até que estudos de alta
qualidade demonstrem sua validade e confiabilidade. Somente depois disso, o
teste deve ser utilizado como ferramenta de mensuração de desfechos em ensaios
clínicos.
A
presente revisão de escopo buscou por oportunidades para melhor entender o tema
em questão. Diante disso, foi possível identificar as seguintes lacunas de
conhecimento:
1.
Literatura existente de baixa qualidade => necessidade de estudos de melhor
qualidade metodológica para classificar a aplicabilidade do teste de Gillet.
2.
População estudada bastante diversa => necessidade de estudos abordando
populações específicas.
A
presente revisão de literatura sugere que o teste de Gillet
apresenta baixa confiabilidade interexaminador, não
devendo ser considerado para o uso em estudos científicos como ferramenta de
mensuração do desfecho movimento. Sua utilidade clínica é contestável e, por
isso, seu uso deve ser coerente com a experiência do profissional e acompanhado
de outros testes confiáveis.
Conflito
de interesses
Os
autores declaram não haver conflitos de interesses.
Fontes
de financiamento
Os
autores declaram não haver fontes de financiamento.
Contribuição
dos autores
Concepção
e desenho da pesquisa:
Meirelles FO, Rocha FM; Coleta de dados: Meirelles FO; Análise e
interpretação dos dados: Meirelles FO; Rocha FM; Redação do manuscrito:
Meirelles FO, Rocha FM; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo
intelectual importante: Meirelles FO, Rocha FM.