Fisioter Bras.
2023;24(3):315-32
ARTIGO
ORIGINAL
Influência
da pandemia de COVID-19 no surgimento de burnout em fisioterapeutas de unidades
de terapia intensiva
Influence of the COVID-19 pandemic on the emergence of
burnout in physiotherapists in intensive care units
Paulo
Henrique de Moura1, Joana Aparecida da Conceição Andrade1,
Fábio Augusto D’alegria Tuza1, Washington da Silva Matos1,
Adalgiza Mafra Moreno1
1Universidade Iguaçu (UNIG), Rio de
Janeiro, Brasil
Recebido
em: 12 de abril de 2023; Aceito em: 20 de maio de 2023.
Correspondência: Paulo Henrique de Moura, paulohdemoura@gmail.com
Como citar
Moura PH, Andrade JAC, Tuza FAA, Matos WS, Moreno AM. Influência da pandemia de COVID-19 no surgimento de Burnout em fisioterapeutas de unidades de terapia intensiva. Fisioter Bras. 2023;24(3):315-32. doi: 10.33233/fb.v24i3.5445
Resumo
Introdução: A pandemia de COVID-19 mudou
drasticamente a rotina de trabalho dos fisioterapeutas que atuaram na linha de
frente em unidades de terapia intensiva, como também resultou impactos
emocionais duradouros nestes profissionais. Objetivo: Analisar a
influência da pandemia de COVID-19 no desempenho laboral e emocional de
fisioterapeutas que atuaram em unidades de terapia intensiva. Métodos:
Trata-se de um estudo transversal, descritivo, realizado em fisioterapeutas de
ambos os sexos e todas as idades. Foram entrevistados 136 fisioterapeutas,
sendo utilizados dois questionários, o primeiro referente as características
profissionais e comportamentais, e o segundo sobre as condições físicas e
psíquicas avaliada pelo índice de Burnout em diferentes instituições, sendo
utilizado a ANOVA de duas vias, seguido do pós-teste de Tukey
para diferença entre os sexos e instituições. Resultados: A experiência
profissional em terapia intensiva foi relatada por 93,6% dos fisioterapeutas, e
47,1% já exerciam atividade há mais de 10 anos, 64% relataram carga horária
semanal de trabalho entre 30 e 60 horas, mesmo assim 80,1% não consideraram
justo o somatório das remunerações. O percentual de fisioterapeutas com algum
nível de síndrome de Burnout foi de 85%. Não houve diferença da síndrome de
Burnout entre os sexos (p = 0,474), já a alocação dos profissionais em
instituições federais e particular mostrou diferença para o aparecimento da
síndrome (p < 0,001). Conclusão: O excesso de carga horária semanal
de trabalho em instituições hospitalares favorece o estresse físico e
emocional, podendo desencadear síndrome de Burnout, impactando na saúde mental,
produtividade laboral e afastamento do trabalho de fisioterapeutas
intensivistas.
Palavras-chave: desempenho laboral; fisioterapeutas;
COVID-19; esgotamento psicológico, pandemias.
Abstract
Introduction: The COVID-19
pandemic drastically changed the work routine of physical therapists who worked
on the front line in intensive care units, as well as resulting in lasting
emotional impacts on these professionals. Objective: To analyze the
influence of the COVID-19 pandemic on the work and emotional performance of
physical therapists in intensive care units. Methods: This is a
cross-sectional, descriptive study carried out with physical therapists of both
sexes and all ages. A total of 136 physical therapists were interviewed, using
two questionnaires, the first referring to professional and behavioral
characteristics and the second about physical and psychological conditions
evaluated by the Burnout index in different institutions, two-way ANOVA was
used, followed by Tukey's post-test for differences between genders and
institutions. Results: Professional experience in intensive care was reported
by 93.6% of the physical therapists, 47.1% had been working for more than 10
years, 64% said a weekly workload between 30 and 60 hours, and even so, 80.1%
did not consider the sum of the remunerations fair. The percentage of physical
therapists with some level of Burnout Syndrome was 85%. There was no difference
in Burnout syndrome between the sexes (p = 0.474), on the other hand, the
allocation of professionals in federal and private institutions showed a
difference in the appearance of the syndrome (p < 0.001). Conclusion:
The excessive weekly workload in hospital institutions favors physical and
emotional stress, which can trigger Burnout syndrome, impacting mental health,
work productivity, and absence from work of intensive care therapists.
Keywords: work performance; physical
therapists; COVID-19; burnout, psychological; pandemics.
Em
dezembro de 2019 um novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi
detectado no sistema respiratório de trabalhadores num mercado de animais na
cidade de Wuhan na China, iniciando nos meses seguintes um surto de
contaminação em diversos países, sendo declarado em março de 2020 pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) uma pandemia [1]. As manifestações e
complicações da COVID-19 são sistêmicas e apresentam desde de sintomas leves
como febre, tosse seca e prostração, até quadros graves de Síndrome
Respiratória Aguda (SDRA), que podem avançar com lesão renal, choque séptico e
falência de múltiplos órgãos [2]. Indivíduos com fatores de risco preexistentes
como idade avançada, cardiopatias, diabetes, doença pulmonar crônica e
imunossuprimidos são mais vulneráveis aos desfechos desfavoráveis [1].
Segundo
a OMS, o número de casos mundiais de SARS-CoV-2 confirmados até junho de 2022
foi de 535,7 milhões, as mortes já somam 6,3 milhões e continuam a crescer,
mesmo após o período vacinal [3]. No Brasil os casos confirmados são de 31,5
milhões, com 668.110 óbitos, a letalidade atual é de 2,1%, o país ocupa a 16º
posição em número de óbitos, com 3.140 óbitos por milhão de habitantes [4].
Segundo as estatísticas, 80% dos indivíduos diagnosticados não necessitaram de
hospitalização, apresentando a forma leve da doença sendo acompanhados em
domicílio, somente 15% evoluíram para algum tipo de comprometimento
respiratório e 5% desenvolveram insuficiência respiratória aguda, necessitando
de intervenções de maior complexidade e cuidados intensivos [5]. Mesmo no
período atual, com a 3ª e 4ª dose vacinal em andamento, ainda são necessários
diversos cuidados nas práticas cotidianas, como intensificação da lavagem de
mãos, uso de máscaras e distanciamento social entre pessoas [6].
Infelizmente
entre os anos de 2020 e 2021, o país registrou dois grandes picos de contágios,
naquele período ainda sem a terapia vacinal, muitos pacientes e profissionais
de saúde com e sem fatores de risco foram acometidos pela forma grave da doença
e evoluíram a óbito [1,7]. O crescente número de internações revelou a
vulnerabilidade pela sobrecarga do sistema de saúde público e privada,
demonstrado pela escassez na quantidade e qualidade de profissionais,
insuficiência de leitos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), limitação do
número de ventiladores mecânicos, falta de medicamentos e de Equipamentos de
Proteção Individual (EPI). Esse somatório de deficiências, dificultou o
controle da pandemia, expôs as precárias condições de trabalho, sobrecarregou
os profissionais de saúde, acarretando afastamento das atividades por
diagnóstico ou sintomatologia de COVID-19 [7,8,9].
Neste
cenário, os trabalhadores da área da saúde vivenciaram enormes desafios no
enfrentamento à pandemia como a falta de treinamento especializado para lidar
com os casos mais graves, elevado grau de contágio no âmbito de trabalho,
escassez de insumos, lesões por uso excessivo de EPIs, sobrecarga de trabalho,
subcontratações, salários precários e os impactos sobre a saúde mental [7].
Dentre os profissionais de saúde com papel primordial nesta pandemia,
destacam-se os fisioterapeutas, que realizam inúmeros procedimentos em UTI ou emergência
de COVID-19, tais como: auxílio a intubações, pronação e supinação de pacientes
graves, constantes monitorizações, titulações de PEEP (Pressão Positiva
Expiratória Final), ajustes da ventilação mecânica, recrutamentos alveolares,
desmames, extubações, manobras de ressuscitações
cardiopulmonares, dentre outras, em contra partida estes profissionais se
expuseram a contaminação e consequente desgaste físico e emocional [2,5].
Neste
contexto, levanta-se a hipótese de que o cenário pandêmico de COVID-19 afetou
drasticamente a saúde física e emocional dos fisioterapeutas, seja pela
escassez de materiais e condições insalubres de trabalho, seja pelo medo da
contaminação ou pelo desfecho da doença. Desta maneira, as informações
apresentadas por fisioterapeutas que atuaram na linha de frente no combate a
pandemia de COVID-19 são imprescindíveis. A pesquisa teve como objetivo
analisar a influência da pandemia de COVID-19 no desempenho laboral, emocional
e sobre as condições de trabalho de fisioterapeutas que atuaram em unidades de
terapia intensiva em diferentes instituições.
Delineamento
e procedimento de pesquisa
Estudo
transversal e descritivo. A coleta de dados foi realizada no período de março a
agosto de 2021, por meio de dois questionários virtuais inseridos na plataforma
Google Forms®, que entrevistou fisioterapeutas no
estado do Rio de Janeiro que atuaram em unidades de terapia intensiva durante a
pandemia de COVID-19 entre os anos de 2020 e 2021. O primeiro questionário foi
composto por 26 perguntas específicas abertas sobre características pessoais,
formação, atuação e comportamento profissional, perguntas do tipo sim ou não;
horas de trabalho, grau de exposição e uso de EPIs durante a pandemia de
COVID-19, sendo respondido por 136 fisioterapeutas.
O
questionário que avaliou a síndrome de Burnout foi respondido por 136
fisioterapeutas, incluindo perguntas sobre esgotamento profissional,
afastamento das atividades relacionadas à exaustão física e emocional,
depressões e irritações de fisioterapeutas que trabalharam em UTI durante o
período pandêmico.
A
pontuação foi feita sobre as 15 respostas específicas pontuadas de 1 a 5, da
seguinte maneira: nunca (1), raramente (2), às vezes (3), frequentemente (4),
todo tempo (5), sendo o somatório mínimo de 15 pontos (nenhuma alteração) e
máximo 75 pontos (Burnout acentuado). A classificação da síndrome de Burnout
foi feita em cinco níveis, conforme descrito: até 15 pontos (sem indício de
Burnout); entre 16 a 30 pontos (possibilidade de desenvolver Burnout); de 31 a
45 pontos (fase inicial de Burnout); entre 46 a 60 pontos (Burnout instalado),
e entre 61 a 75 pontos (fase avançada de Burnout) [10].
Critérios
de inclusão e exclusão
Os
participantes da pesquisa foram fisioterapeutas voluntários inscritos no
Conselho Regional de Fisioterapia (CREFITO), de ambos os sexos e todas as
idades que atuaram durante o período da pandemia de COVID-19 em hospitais
municipais, privados ou federais em unidades de terapia intensiva. Foram excluídos
do estudo profissionais com função de chefia ou coordenação sem atividade
assistencial.
Análise
dos dados
Os
dados do questionário de COVID-19 com respostas abertas, foi descrito por
variáveis categóricas nominais, expressas em números absolutos e percentuais.
As variáveis ordinais foram descritas por frequência e percentual. Os
principais sintomas e as regiões anatômicas mais lesionadas foram expressas em percentual e número absoluto, sendo considerado
que cada profissional pôde relatar mais de uma observação por variável.
Para
análise do questionário de Burnout, foram identificados os somatórios das
pontuações dos participantes, sendo classificadas de acordo com a divisão dos
cinco níveis quanto a frequência e o percentual correspondente sobre o número
de fisioterapeutas. Os dados apresentaram distribuição paramétrica pelo teste
de Shapiro- Wilk.
A
inferência estatística comparativa entre as três instituições (pública, privada
e federal) foi realizada através da Análise de Variâncias (ANOVA) de duas vias,
sendo a significância estatística dada pelo valor p ≤ 0,05, seguido do
pós-teste de Tukey para identificar a diferença dos
níveis de Burnout entre os sexos e instituições.
Foram
utilizados o software estatístico Statistical Package for the Social Science
(SPSS), versão 25 IBM da Microsoft para análises descritiva e inferências, e o
Excel da Microsoft versão 2019 para confecção gráfica.
Aspectos
éticos
Todos
os participantes assinaram previamente o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) concordando com os termos da pesquisa, conforme a declaração
de Helsinki e resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil. O
presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Iguaçu (CEP- UNIG) e aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa –
CONEP com nº de parecer- 40206020.0.0000.8044.
A
amostra foi composta por 136 fisioterapeutas, com média de idade de 37,9±8,2
(IC 36,5-39,4) sendo mínimo de 25 anos e a máxima de 61 anos. O sexo feminino
representou 75% (102), e 67,6% (92) dos profissionais trabalharam em hospitais
municipais.
Em
relação ao tempo de experiência, 96,3% (131) possuíam experiência prévia em
terapia intensiva, e 47,1% (64) relataram mais de 10 anos de experiência.
Quanto
ao tipo de pós-graduação realizada, a lato sensu foi a mais procurada entre os
fisioterapeutas 80,1% (109), sendo a especialização em terapia intensiva adulto
representada por 69,9% (95). A tabela I apresenta as características
profissionais dos fisioterapeutas.
Tabela
I - Características
profissionais dos fisioterapeutas que atuaram na pandemia de COVID-19
Fonte:
Elaboração das autoras com base em dados da pesquisa. N = número de
participantes; % = percentual correspondente ao número de participantes
Dentre
as características individuais dos fisioterapeutas, apenas 13,2% (18) possuíam
alguma comorbidade prévia, sendo a asma brônquica a mais prevalente 2,9 % (4).
O teste para a COVID-19 foi realizado em 89,7% (122) dos fisioterapeutas, e 55%
(75) realizaram entre dois e quatro testes. O percentual de profissionais com
teste positivo para COVID-19 foi de 62,5% (85). A presença de algum tipo de sintoma
foi relatada por 76,5% (104) dos fisioterapeutas (tabela II).
Sobre
a rotina de trabalho durante a pandemia, 94,1% (128) disseram que a pandemia
resultou em grandes mudanças, uma delas foi relacionada ao horário de descanso,
com relato de 46% (63) dos fisioterapeutas descrevendo ausência do período de
repouso. Em contrapartida, 88,2% (120) afirmaram que a capacitação profissional
melhorou após a pandemia, assim como a participação nas condutas
multidisciplinares dos pacientes mais graves 81,6% (111).
Tabela
II - Características
individuais de saúde e testagem dos fisioterapeutas
na
pandemia de COVID-19
Fonte:
Elaboração das autoras com base em dados da pesquisa. N = número de
participantes; % = percentual correspondente ao número de participantes
A
carga horária semanal de trabalho predominante entre os fisioterapeutas foi
entre 48h e acima 60h semanais sendo relatado por aproximadamente 60% da
amostra. Mesmo com elevado acúmulo de carga horária semanal em dupla ou tripla
jornada de trabalho em diferentes instituições hospitalares, 80,1% (109) não
consideraram a remuneração justa (tabela III).
As
características técnicas, condições de trabalho e mudanças na rotina dos
fisioterapeutas estão descritas na tabela III.
Sobre
o comportamento social dos fisioterapeutas durante a pandemia, 69,1% (94)
alegaram ter mantido os cuidados para evitar o contágio, porém não se isolaram
da família, apenas 14,7% (20) informaram ter recebido apoio psicológico, apesar
de 89% (121) relatarem medo da contaminação durante o atendimento de pacientes
com COVID-19. A prática de alguma atividade física ou relaxante foi adotada por
apenas 32,4% (44) dos fisioterapeutas.
Tabela
III - Características
técnicas, atividade laboral e remuneração de fisioterapeutas durante a pandemia
de COVID-19
Fonte:
Elaboração das autoras com base em dados da pesquisa. N = número de
participantes; % = percentual do número de participantes
A
figura 1 apresenta os sintomas separados por sistemas que mais acometeram os
fisioterapeutas. O sintoma mais comum foi a fadiga (46,3%), seguido da anosmia (37,5%) e febre (35,3%). O sistema com maior
quantidade de sintomas foi o respiratório.
Sobre
a escassez de EPI nos hospitais, 10,4% apontaram carência de máscaras N95, 9,7%
e 9,1% de capote e face shield, respectivamente, 4,5%
indicaram falta de óculos de proteção, 3,2% de luvas, 1,9% de touca e 0,6% de
máscara cirúrgica, e 60,4% relataram que não faltou nenhum tipo de proteção.
As
regiões do corpo mais acometidas pelo uso excessivo de EPI foram o nariz (33%),
bochecha (12,6%), orelha (8,9%), testa (6,8%), mãos (3,7%), e outras partes da
cabeça e rosto somaram 3,1%, 31% relataram não ter sofrido nenhuma lesão por
uso excessivo de EPI. A maioria dos profissionais relataram lesões em mais de
uma região do corpo.
Sobre
a manutenção da prática de atividade física durante a pandemia, a musculação
foi a atividade de maior prática (9,6%), seguida da corrida (5,9%), Crossfit (2,9%), Pilates, yoga e natação juntos somaram
8,1% e 10,3% relataram praticar esportes diversos, 69,1% relataram não ter
praticado nenhuma atividade física.
Fonte:
Elaboração das autoras com base em dados da pesquisa. Houve relato de mais de
um sintoma por sistema acometido nos fisioterapeutas
Figura
1 - Porcentagem de
sintomas de COVID-19 em fisioterapeutas separado por sistema
O
questionário que avaliou a síndrome de Burnout foi respondido por 136 fisioterapeutas,
e dentre os cinco níveis de Burnout mensurados, o mais prevalente foi na fase
inicial 57% (78), seguido do Burnout já instalado 24% (32), possibilidade de
desenvolver Burnout 16% (21) e por último o Burnout em fase avançada 3% (5).
Destaca-se
que 28% (41) dos profissionais já manifestavam níveis de Burnout instalado ou
avançado, evidenciando que em cada 5 fisioterapeutas entrevistados apenas 1 não
demonstra nível de Burnout em andamento. Nenhum fisioterapeuta foi classificado
no nível sem indício de Burnout (inferior a 15 pontos).
O
número de fisioterapeutas alocados por instituições diferiu em quantidade e
também por sexo, sendo o hospital municipal com maior número de participantes.
A média do nível de Burnout por sexo foi de 39,5 (± 9,32) nos homens e 41,0 (±
10,3) nas mulheres, demonstrando não haver diferença estatística entre os sexos
(p = 0,444) conforme tabela IV. Já a análise dos níveis de Burnout dos
profissionais entre as instituições demonstrou diferença entre os grupos (p <
0,001).
A
ANOVA de duas vias mostrou que não houve efeito isolado do sexo (p = 0,474) assim
como da interação do sexo nas instituições sobre os níveis de Burnout (p =
0,912), porém entre as instituições, o efeito demonstrou diferença, [(F2,13) =
7,795]; p < 0,001. O post-teste de Tukey mostrou
que o índice de Burnout foi maior nas instituições federais e privadas, no
entanto sem diferenças entre elas. Já a comparação entre as instituições
federal e pública (p = 0,002), e privada e pública (p = 0,017) apresentaram
diferenças do índice de Burnout em fisioterapeutas (tabela IV).
Tabela
IV - Análise
descritiva dos níveis de Burnout em fisioterapeutas e comparações múltiplas
utilizando teste de Tukey e Post Hoc entre as
instituições e sexo
N
= número de fisioterapeutas; Média = média dos níveis de pontuação de Burnout;
DP = desvio padrão; IC = Intervalo de confiança; df =
grau de liberdade; F = teste de Fisher; *ANOVA de duas vias
A
proposta do presente estudo foi discutir a influência da pandemia da COVID- 19
na saúde emocional e física dos fisioterapeutas durante a atividade laboral em
instituições privadas, públicas e federais. Observamos que houve impacto sob os
aspectos, emocionais e físicos que propiciaram o aparecimento de lesões por uso
excessivo de EPIs e desgaste emocional que cursaram com a síndrome de Burnout
nestes profissionais.
Nos
dois últimos anos de cenário pandêmico, a fisioterapia intensiva revelou-se uma
especialidade indispensável e ao mesmo tempo carente, apontando a insuficiência
de especialistas qualificados, assim como divergência salarial e número de
horas trabalhadas comparada a outras profissões. Estudos apontam que mais de
10% dos fisioterapeutas estão insatisfeitos com a remuneração atual, apesar de
despreparados [11].
O
ritmo de crescimento da profissão disparou nos últimos 20 anos, a procura pela
especialização em fisioterapia intensiva foi impulsionada, o mesmo
comportamento foi observado entre os anos de 2000 a 2010 quando a especialidade
de traumato-ortopedia se mostrou essencial para
recuperação de atletas e praticantes de esportes [12].
A
faixa etária dos fisioterapeutas que compõe o mercado de trabalho vem
demonstrando um aumento variando na faixa entre 30 e 40 anos de idade, conforme
observado no grupo pesquisado, e também relatado por Badaró e Ghilhem (2011). O sexo feminino compôs 3/4 dos
fisioterapeutas entrevistados, corroborando o estudo de Badaró e Ghilhem, que constatou que as mulheres representavam 83%
dos fisioterapeutas no mercado de trabalho, o que, segundo os pesquisadores,
associa-se a maior sensibilidade das mulheres às questões humanitárias e ao
fator intrínseco de cuidado do ser humano na escolha da profissão [11].
Outro
importante achado entre os fisioterapeutas é a imediata procura pela
especialização lato sensu que capacita a prática profissional e possibilita a
entrada no mercado de trabalho; do grupo entrevistado, 97% já possuíam ou
estavam cursando alguma especialização, para o mestrado e doutorado os resultados
foram inferiores, respectivamente 17,7% e 4,4%, visto que a formação stricto
sensu qualifica esses profissionais para a docência e pesquisa. Comparado ao
grupo de Badaró e Ghilhem, o percentual de
especialistas também foi alto, sendo descrito em 63% dos entrevistados, já o
mestrado e o doutorado foram 19% e 7%, respectivamente [11,12].
Um
outro importante ponto de mudança ao longo dos anos é a quantidade de vínculos
empregatícios dos fisioterapeutas e acúmulo de carga horária, sendo constatado
que 41,2% dos entrevistados trabalhavam em duas instituições e 27,2%
trabalhavam em três instituições. Isto demonstra uma diferença de
aproximadamente o dobro de carga de trabalho em uma parte do grupo entrevistado
em comparação ao perfil dos profissionais estudados em 2011 na região sul do
Brasil, já que o vínculo empregatício em duas instituições naquela época
representava apenas 26%, o que revela uma brusca mudança do perfil da profissão
na atualidade, sendo reforçado ainda mais pelo cenário pandêmico [9,11,13].
O
vínculo empregatício dos fisioterapeutas brasileiros ainda demonstra uma série
de conflitos, especialmente para os autônomos, que trabalham sem vínculo e sem
garantia de direitos sociais, como: férias, décimo terceiro, Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço (FGTS), licenças e aposentadoria [11]. Na atual pesquisa,
grande parte dos fisioterapeutas estavam compondo uma série de contratos
municipais e estaduais visando atender a pandemia, sem estabilidade para
carreira profissional devido ao caráter temporário, o percentual de alocação em
instituições públicas foi de 67,6%, em instituições particulares foi de 22,1%,
e uma minoria compôs hospitais federais [6].
Fora
do cenário pandêmico, um perfil inverso foi relatado por Mariotti
[14], que observou que a alocação de fisioterapeutas em hospitais particulares
era de 59,2%, e em hospitais municipais de 19,2%.
O
somatório de carga horária também demonstrou que 91,2% dos fisioterapeutas
trabalharam bem acima da carga horária proposta pelo conselho (30 horas
semanais) para o pagamento do piso salarial por instituição.
Dados
da pandemia expressam mudança da rotina de trabalho e de vida de 95% dos
trabalhadores de saúde, essas mudanças podem ainda implicar em impactos que
persistirão sob a saúde mental, aspectos psicossociais e econômicos que podem
se estender mesmo após a passagem da pandemia [15]. Sabe-se que as condições de
trabalho favorecem tanto a manutenção da saúde, como promovem adoecimento
[14,16]. Na presente pesquisa, 46,3% dos profissionais relataram precarização,
ausência de tempo e de locais para descanso durante as atividades laborais. De
acordo com Fundação Osvaldo Cruz, metade dos profissionais de saúde trabalharam
com jornadas muito acima de 40 horas semanais, e 45% alegaram necessidade de
mais de um emprego para sobreviver [16].
Os
profissionais de saúde são considerados um grupo de elevado risco de contágio
pelo coronavírus, devido as atividades de cuidado com
infectados e realização de procedimentos invasivos que liberam altas cargas
virais. Teixeira et al. [14] consideram a COVID-19 uma doença ocupacional,
transmitida desde o transporte diário no deslocamento para o trabalho como
também in situ no ambiente de trabalho, somado a esse risco, estão ainda as
comorbidades presentes nos profissionais [17]. Dentre as comorbidades mais
prevalente nos fisioterapeutas, a asma e a hipertensão arterial afetaram 5% dos
entrevistados, alinhado com Simian et al. [18]
que demonstrou as mesmas comorbidades, porém com o dobro de acometimento dos
participantes (10%) [14].
Os
sintomas mais relatados foram a fadiga, anosmia,
febre e tosse, respectivamente variando entre 46% e 33,8% dos fisioterapeutas.
A Organização Panamericana de Saúde (OPAS) relatou os
mesmos sintomas na população, sendo a perda do olfato a menos observada,
seguida de perda de paladar, congestão nasal e dor de garganta [19].
O
rastreamento destes profissionais é de extrema importância para segurança dos
pacientes e familiares, dentre os entrevistados 75% tinham realizado até 3
testes para COVID-19 e 62,5% tinham resultado positivo. Infelizmente muitos
profissionais de saúde perderam suas vidas no exercício da profissão, como
visto em inúmeras reportagens da vivência diária destes profissionais e como
lidaram com adoecimento e morte de colegas de profissão [6].
O
uso de EPI minimizou a contaminação e trouxe maior segurança a saúde dos
fisioterapeutas, sendo fornecido gratuitamente pelas instituições de saúde a
todos os trabalhadores. Os EPI incluem, máscaras cirúrgicas, respirador
particulado do tipo N95, protetores oculares e faciais, capote e gorro [6].
Segundo
o estudo da Fiocruz, que avaliou aproximadamente 25 mil profissionais de saúde,
43,2% relataram que não se sentiram protegidos no enfrentamento da pandemia de
COVID-19, e 23% relataram inadequação, escassez ou falta dos EPI nas
instituições, destes, 64% ainda revelaram improviso de equipamentos [16]. No
presente estudo a distribuição de EPI foi igualitária, apenas a máscara
cirúrgica (12%) e face Shield (13%) tiveram menor
disponibilidade. A Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) atualizou uma nota
técnica (n. 04/2020), sobre o uso prolongado e reutilização de alguns EPIs, que
impactam negativamente na saúde dos trabalhadores causando lesões em diversas
áreas do corpo por uso excessivo [7].
Há
poucos estudos referentes às lesões dermatológicas causadas pelos EPI,
especialmente na região de face e cabeça associadas ao uso prolongado e à
pressão que imprimem no local de uso, Coelho et al. [20] verificaram
lesões por EPI em 69,4% dos profissionais de saúde entrevistados de um total de
1.106 participantes, comparados aos 53,7% do presente estudo que também
desenvolveram lesões por uso de EPIs, demonstrando que a incidência de lesão
impactou em ambos os estudos em mais da metade dos profissionais. Em ambas as
pesquisas, a região nasal foi a de maior incidência de lesão, com 31,7% dos
profissionais sendo acometidos no estudo de Coelho et al. [20],
corroborando nosso estudo no qual os profissionais relataram 33% das lesões
nesta região. Em alguns países a diferença foi ainda maior, Koh et al.
[21] verificaram 97% de lesões dermatológicas numa amostra de 542 profissionais
de saúde [17,20].
O
medo da contaminação foi um sentimento presente em 89% dos fisioterapeutas, o
despreparo técnico para lidar com os casos graves da doença apesar de baixo
(11,8%), não deveria estar presente entre os profissionais, já que 70,6%
afirmaram ter recebido treinamento para atuar na pandemia [20,22].
Segundo
Vedovato et al. [6], a ansiedade, o medo, e o
estresse foram as sensações mais descritas pelos profissionais de saúde durante
a pandemia. O estudo de Kang na cidade de Wuhan
expressou a enorme pressão vivenciada por profissionais de saúde descrevendo
sensações como: excesso de trabalho, cansaço, proteção inadequada, frustração,
isolamento, raiva, emoções negativas durante assistência, falta de contato com
a família, problemas psicológicos, depressão, insônia, e dificuldade para
tomada de decisões [17,22]. A combinação desses sentimentos pode ser mensurada
pelo estresse crônico no trabalho sendo largamente avaliado pelo questionário
do índice Burnout que combina três fatores: exaustão emocional pela demanda
excessiva de trabalho, despersonalização caracterizada pelo senso de distância
emocional dos pacientes e baixa realização pessoal com redução da autoestima e
da eficácia no trabalho [23].
A
síndrome de Burnout esteve presente em algum nível em todos os fisioterapeutas,
sendo que em 83% dos participantes os níveis já eram iniciais ou instalado. Morgantini et al. [24], em um estudo que incluiu
2.707 profissionais de saúde durante a pandemia em 60 países, verificaram
síndrome de Burnout em níveis acentuados em 51% dos profissionais.
As
instituições hospitalares federais e privadas mostraram níveis de Burnout não
só maiores como também diferentes das instituições públicas, o que em parte
pode ser explicado, segundo Dutra et al. [25] por uma maior entrega
emocional, rotina de treinamento técnico e atribuições organizacionais que
levam ao maior número de tarefas físicas e burocráticas nestas instituições,
deixando o volume de trabalho diário mais intenso e estressante. Associado a
isso, a assistência prestada por esses profissionais foi de caráter terciário
de alta complexidade hospitalar, o que segundo Correia e Rios (2021) tem maior
impacto sobre os fisioterapeutas, isto também obriga estes profissionais a
exercer sua atividade com interdisciplinaridade e pronta resposta a diversidade
de doenças abordadas [26].
A
pesquisa utilizou delineamento observacional por coleta de dados através de
instrumento de questionário sendo enviado para diversos fisioterapeutas
atuantes, inclusive em diferentes estados, porém muitos não aderiram ao
preenchimento por se tratar de prática voluntária, o que poderia aumentar o
tamanho da amostra. O preenchimento das respostas do questionário pode sofrer
algum viés de resposta em decorrência da memória, decorrente de uma semana
negativa de trabalho vivenciada pelo fisioterapeuta, podendo influenciar no
efeito das respostas. Mesmo assim, a amostra se faz representativa por ter
avaliado o índice de Burnout em diferentes instituições e com número
considerável de participantes. Um follow-up que acompanhe estes profissionais,
assim como outros delineamentos seriam interessantes para avaliar cenários pré e pós-pandemia.
A
enorme oferta de trabalho durante a pandemia impactou diretamente na rotina e
na carga horária, obrigando os fisioterapeutas a trabalharem em mais de uma
instituição hospitalar, entretanto, a equiparação salarial não compensou a
quantidade de horas trabalhadas. Este excesso de carga de trabalho resultou em
lesões anatômicas predominantes na face em mais da metade dos fisioterapeutas,
mesmo recebendo treinamento especializado e recursos adequados de EPI
fornecidos pelas instituições.
A
síndrome de Burnout esteve presente em algum nível em todos os fisioterapeutas,
mais da metade foram identificados com a doença na fase inicial, e 1/4 com a
síndrome de Burnout instalada. Foram observados maiores níveis de Burnout em
fisioterapeutas alocados em instituições privadas e federais.
Novas
medidas para saúde mental e física dos fisioterapeutas devem ser instituidas em suas rotinas laborais, como melhoria da
infraestrutura institucional que proporcione adequada distribuição do número de
fisioterapeutas por unidades de atendimento, aquisição de equipamentos
específicos a profissão, período de descanso entre os plantões e melhoria
salarial.
Conflitos
de interesse
Os
autores declaram não haver conflito de interesses.
Fontes
de financiamento
Este
trabalho foi desenvolvido com financiamento próprio.
Contribuição
dos autores
Concepção
e desenho da pesquisa:
Moura PH, Moreno AM; Coleta de dados: Andrade JAC, Matos WS; Análise
e interpretação dos dados: Moura PH, Moreno AM; Análise estatística:
Moura PH; Redação do manuscrito: Moura PH, Andrade JAC, Tuza FAD; Revisão crítica do manuscrito quanto ao
conteúdo intelectual importante: Moura PH, Tuza
FAD, Moreno AM.