Fisioter Bras. 2023;24(6):795-811

doi: 10.33233/fb.v24i6.5497

ARTIGO ORIGINAL

A utilização de avaliação de participação e fatores contextuais para análise ampliada do neurodesenvolvimento infantil

The use of participation assessment and contextual factors for extended analysis of child neurodevelopment

 

Camila Santos Barros, Maria Fernanda Vieira, Carla Martins Trevisan Ribeiro

 

Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Recebido em: 26 de junho de 2023; Aceito em: 10 de novembro de 2023.

Correspondência: Camila Santos Barros, camila.barros@iff.fiocruz.br

 

Como citar

Camila Santos Barros, Maria Fernanda Vieira, Carla Martins Trevisan Ribeiro. A utilização de avaliação de participação e fatores contextuais para análise ampliada do neurodesenvolvimento infantil. Fisioter Bras. 2023;24(6):795-811. doi: 10.33233/fb.v24i6.5497 

 

 

Resumo

Objetivo: Investigar o uso de instrumentos de avaliação de participação e fatores contextuais para permitir uma análise ampliada do neurodesenvolvimento de crianças de risco. Métodos: Estudo transversal, composto por crianças pré-termo, entre 3 e 42 meses. Foram excluídas aquelas com malformação congênita, síndrome genética e exposição à infecção congênita. Para a avaliação foram utilizados os instrumentos Escala Motora Infantil de Alberta (AIMS), Teste de Denver II, Child Engagement in Daily Life (CEDL), Affordances in the Home Environment for Motor Development (AHEMD) e um questionário estruturado elaborado pelas pesquisadoras. Resultados: Amostra de 29 crianças com maior prevalência de alteração nos domínios motor fino (34,5%) e amplo (24,1%); em relação à participação, 58,6% quase nunca brincavam ao ar livre com outras crianças e 75,9% quase nunca realizavam passeios de entretenimento; quanto aos fatores contextuais, observou-se baixa provisão de materiais de motricidade fina (46,4%) e grossa (57,1%) nas residências. Conclusão: Crianças com neurodesenvolvimento classificado como questionável tiveram alterações nos domínios de participação e fatores contextuais, apontando para a importância de uma avaliação mais detalhada. O uso de instrumentos para análise destes domínios auxiliou na compreensão ampliada do neurodesenvolvimento.

Palavras-chave: prematuridade; classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde; desenvolvimento infantil

 

Abstract

Objective: To investigate the use of participation and contextual factors assessment instruments to enable expanded analysis of neurodevelopment in at-risk children. Methods: Cross-sectional study, composed of preterm children aged between three and 42 months. Those with congenital malformations, genetic syndromes and exposure to congenital infections were excluded. The instruments Alberta Infant Motor Scale (AIMS), Denver Test II, Child Engagement in Daily Life (CEDL), Affordances in the Home Environment for Motor Development (AHEMD) and a structured questionnaire developed by the researchers were used for assessment. Results: Sample of 29 children with higher prevalence of alterations in fine (34.5%) and gross (24.1%) motor domains; regarding participation, 58.6% almost never played outdoors with other children and 75.9% almost never went on entertainment outings, regarding contextual factors, low provision of fine (46.4%) and gross (57.1%) motor skills materials in homes. Conclusion: Children with neurodevelopment classified as questionable had changes in the domains of participation and contextual factors, indicating the importance of a more detailed assessment. The use of instruments to analyze these domains contributed to a better understanding of neurodevelopment.

Keywords: premature; international classification of functioning; disability and health; child development

 

Introdução

 

O neurodesenvolvimento infantil é uma sequência progressiva de atividades que ocorrem a partir de uma relação dinâmica entre o ambiente, os fatores genéticos e o cérebro, de forma que este último se desenvolve ao estabelecer funções adaptativas sensoriais, motoras, cognitivas, socioemocionais, culturais e comportamentais [1]. Assim, as experiências ambientais, sensoriais e emocionais positivas durante a primeira infância são importantes para direcionarem o desenvolvimento ao longo de uma trajetória típica, enquanto as negativas podem desviar essa trajetória. A partir desta premissa, entende-se que tanto condições fetais como pós-natais afetam os resultados de crescimento e desenvolvimento, e que durante o período gestacional, condições adversas como desnutrição materna, deficiências de micronutrientes, infecções subclínicas e inflamações, podem culminar em um nascimento antes do esperado [1,2].

A prematuridade pode causar diversas complicações de estrutura e função corporal a curto e longo prazo, as quais aumentam o risco de morbidade dos recém-nascidos e podem influenciar o neurodesenvolvimento [3]. Para além do risco biológico, fatores ambientais e sociais também podem afetar a evolução neurosensóriomotora das crianças nascidas prematuras (PMT). Condições socioeconômicas, composição familiar, escolaridade dos pais, estímulos domiciliares, cuidados infantis, acesso a diagnóstico precoce de deficiências e intervenções no momento oportuno são descritos como fatores que influenciam a funcionalidade das crianças, principalmente nos primeiros anos de vida, que é um período importante do desenvolvimento [4,5]. É na primeira infância que o cérebro passa por eventos ontogenéticos em momentos diferentes como neurogênese, crescimento axonal e dendrítico, sinaptogênese, mielinização, entre outros, que se complementam e contribuem para o desenvolvimento vital de diversos domínios corporais [6].

Nesse contexto, realizar um acompanhamento do crescimento e desenvolvimento dessa população é de suma importância. Os ambulatórios de seguimento, também chamados de “follow-up”, desempenham papel crucial ao ofertar atendimento multidisciplinar especializado de forma regular, com avaliações padronizadas de diversos domínios da funcionalidade, de maneira a auxiliar na detecção precoce de atrasos no desenvolvimento e no encaminhamento para terapias quando necessário [7,8].

O termo funcionalidade abrange as funções e estruturas do corpo, atividade e participação, e denota os aspectos positivos da interação entre um indivíduo e os fatores contextuais relacionados a ele (ambientais e pessoais). Esta compreensão se dá a luz do conceito introduzido pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) [9].

Assim, por meio da CIF, é possível obter um olhar integral sobre o indivíduo, abordando as condições de saúde sob diversos domínios e associá-los ao neurodesenvolvimento infantil [10]. Existe vasto conteúdo científico publicado com a descrição de funções, estruturas corporais e atividades (neurodesenvolvimento) de PMT. Contudo, observa-se uma escassez de estudos que descrevam tanto a participação como os fatores contextuais relacionados a essa população com o uso de instrumentos de avaliação.

Analisar criticamente o ambiente social, considerando o contexto familiar e a estimulação domiciliar ofertada, bem como as oportunidades de participação vivenciadas por esta criança, permite compreender de forma aprofundada o desenvolvimento. Dada a lacuna no conhecimento, o objetivo deste estudo foi investigar o uso de instrumentos de avaliação de participação e de fatores contextuais para uma análise ampliada do neurodesenvolvimento de crianças PMT acompanhadas em um ambulatório de seguimento de crianças de alto risco do Rio de Janeiro.

 

Métodos

Estudo transversal descritivo analítico, realizado em um Ambulatório de Seguimento da Neonatologia, de um hospital de referência do Estado do Rio de Janeiro, no período de setembro de 2021 a agosto de 2022. A amostra foi composta por crianças pré-termo, com idade entre 3 e 42 meses de idade cronológica, que compareceram ao atendimento no ambulatório durante o período de realização da pesquisa. Os critérios de exclusão foram: malformação congênita, síndrome genética e exposição à infecção congênita.

Os desfechos avaliados incluíram o neurodesenvolvimento, fatores contextuais e participação. Foram analisadas as variáveis: (1) gestacionais e neonatais (dados contidos em prontuário médico) - tipo de parto, idade gestacional (IG), classificação do peso para a IG, morbidades neonatais (displasia broncopulmonar, hemorragia intracraniana, retinopatia da prematuridade, e sepse neonatal) e tempo de internação hospitalar; (2) de desenvolvimento - pontuação total e percentil da Escala Motora Infantil de Alberta (AIMS, Alberta Infant Motor Scale) e classificação do desenvolvimento segundo o Teste de Triagem do Desenvolvimento de Denver II; (3) contextuais pessoais (dados de prontuário médico) - sexo e idade na data da consulta, e ocorrência de internação hospitalar após alta neonatal nos últimos 12 meses; (4) contextuais ambientais (coletados em formulário de pesquisa) - família nuclear, existência de rede de apoio; residir com outra(s) criança(s), convivência com o pai, escolaridade e ocupação dos pais ou cuidadores, renda per capita, suporte econômico (bolsa família, benefício de prestação continuada, ajuda temporária COVID-19), vínculo com terapias (fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional), e classificação de itens do instrumento Affordances in the Home Environment for Motor Development (AHEMD); e (5) de participação - frequência em creche/escola, prática de esportes, tempo de uso de tela coletados em formulário de pesquisa, e itens do instrumento Child Engagement in Daily Life (CEDL) (figura 1).

 

 

Figura 1 - Modelo biointegrativo da CIF e formulário de coleta de dados

 

A avaliação da adequação do peso de nascimento (PN) para IG, considerou o escore z do PN. Foram classificados como adequados para idade gestacional (AIG) os RNs com escore z do PN entre ≥ -1,28 e < 1,28 desvios-padrões (correspondente aos percentis entre 10 e 90), e pequenos para idade gestacional (PIG) aqueles com escore z do PN < -1,28. A idade gestacional corrigida (IC) foi utilizada até dois anos de idade para avaliação do neurodesenvolvimento.

Todas as crianças da amostra tiveram o neurodesenvolvimento avaliado pelo teste de Denver. Este instrumento consiste em um teste de triagem para avaliação do desenvolvimento infantil, já traduzido e adaptado para a população brasileira, utilizado para a faixa etária de zero a seis anos, que classifica os domínios social, motor fino, motor amplo e linguagem em normal, questionável ou não aplicável [11,12].

Para aquelas crianças até 18 meses, o desenvolvimento motor também foi avaliado pela AIMS, um instrumento observacional validado para a população brasileira, que avalia a maturação da motricidade ampla e o controle da musculatura antigravitacional através de 58 itens, agrupados em subescalas nas posturas prono, supino, sentado e de pé [13]. A classificação final permite caracterizar o desempenho motor em normal, suspeito ou anormal [14].

O instrumento AHEMD consiste em um questionário com a finalidade de avaliar a qualidade e a influência do contexto familiar no desempenho motor, através de características físicas estruturais, variedade de estímulos proporcionados pelos adultos que convivem com a criança e oferta de brinquedos adequados de acordo com a faixa etária [15,16]. Está disponível, traduzido em português, e possui duas versões, uma direcionada a lactentes de três a 18 meses, composta por 35 itens divididos em quatro dimensões (espaço físico, variedade de estimulação, brinquedos motores finos e brinquedos motores grosseiros), e sua pontuação total pode ser categorizada em quatro descrições de recursos domésticos: menos que adequado, moderadamente adequado, adequado e excelente [15]. Nesta pesquisa, as descrições “adequado” e “excelente” foram unidas para facilitar a análise.

A outra versão destina-se a crianças de 18 a 42 meses, avaliando a quantidade e qualidade das oportunidades motoras oferecidas no ambiente domiciliar. Esta versão conta com 67 itens divididos em: atividades diárias, ambiente físico da residência e avaliação de brinquedos e materiais existentes na habitação [17]. O somatório das respostas classifica cada dimensão em: muito fraca, fraca, boa e muito boa. Nesta pesquisa, as descrições “muito fraca” e “fraca” e “boa” e “muito boa” foram unidas para facilitar a análise. O somatório de todas as dimensões determina o escore final, classificando-se as oportunidades do domicílio em “baixa”, “média” e “alta”.

O CEDL é uma ferramenta que possibilita investigar a frequência de participação em atividades familiares e recreativas [18]. É utilizado principalmente em crianças com paralisia cerebral (PC), mas justifica-se sua utilização na pesquisa pelo perfil de risco da população do estudo. Disponível gratuitamente em inglês, o instrumento foi traduzido para o português pelas autoras.

Foi realizada a análise estatística pelo programa SPSS para estimar frequências de ocorrências, identificar padrões e análise de discrepâncias nos dados. A amostra foi dividida de acordo com o resultado do teste de triagem de Denver em normal ou questionável e foram calculadas médias, medianas e proporções das variáveis. A participação na pesquisa foi vinculada à autorização pelos responsáveis legais das crianças através do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), submetido previamente ao Comitê de Ética em Pesquisa do local de realização do estudo e aprovado sob número de registro 4.888.600.

 

Resultados

 

Foram elegíveis 31 crianças pré-termo. Houve uma exclusão por motivo de cardiopatia congênita e uma família recusou participar da pesquisa, totalizando 29 participantes na amostra final. A tabela I detalha as características neonatais da população incluída no estudo. Observou-se que 44,8% (n = 13) das crianças nasceram com IG inferior a 32 semanas e, quanto ao peso de nascimento, 20.7% (n = 6) foram classificadas como PIG. Em relação às comorbidades neonatais, 31% (n = 9) cursaram com displasia broncopulmonar (DBP), 24,1% (n = 7) tiveram hemorragia intracraniana (HIC), 20,7% (n = 6) evoluíram com sepse e 17,2% (n = 5) apresentaram retinopatia da prematuridade (ROP). A mediana do tempo de internação foi de 28 dias, sendo o mínimo observado de 3 e o máximo de 323 dias. As crianças com alteração do neurodesenvolvimento tiveram maior prevalência de morbidades neonatais.

 

Tabela I - Características neonatais da população incluída no estudo

 

aIG = idade gestacional; bPIG = pequeno para a idade gestacional; cDBP = displasia broncopulmonar; dHIC = hemorragia intracraniana; eROP = retinopatia da prematuridade

 

Os resultados sobre o neurodesenvolvimento estão detalhados nas tabelas II e III. No Teste de Triagem de Denver (tabela II), o domínio motor fino apresentou maior prevalência de alteração, com 34,5% (n = 10) seguido do domínio motor amplo com 24,1% (n = 7).

 

Tabela II - Avaliação do neurodesenvolvimento pelo Teste de Triagem de Denver (N = 29)

 

 

Na avaliação através da AIMS (tabela III), 16,7% das crianças (n = 3) apresentaram atraso no desenvolvimento motor, e 22,2% das crianças (n = 4) cursaram com desenvolvimento suspeito. Em contrapartida, 61,1% dos participantes (n = 11) apresentavam desenvolvimento motor normal. Nenhuma criança pontuou nos percentis 75 e 90. Os piores desempenhos na AIMS foram observados nas crianças com desenvolvimento questionável no Teste de Denver (tabela III).

 

Tabela III - Avaliação do neurodesenvolvimento pela AIMS

 

aAIMS = Alberta Infant Motor Scale

 

Em relação às variáveis contextuais pessoais, houve maior prevalência de pacientes do sexo feminino (69%) e a média da idade foi de 15 meses. Ao longo dos últimos 12 meses, houve uma taxa de 20,7% (n = 6) de reinternações hospitalares após a alta neonatal, principalmente nas crianças com desenvolvimento questionável (tabela IV).

Sobre as variáveis contextuais ambientais da tabela IV, destacou-se que a amostra foi composta predominantemente por família nuclear (79,3%), 51,7% (n = 15) dos participantes residiam com outra criança, 89,7% (n = 26) conviviam com figura paterna e 79,3% (n = 23) das famílias referiram ter rede de apoio. Quase metade da amostra (44,8%; 13) das crianças realizava algum tratamento, e a maioria (61,1%; 11), tinha o neurodesenvolvimento classificado como questionável.

Os resultados obtidos com o instrumento AHEMD para análise dos fatores contextuais ambientais também estão descritos na tabela IV. O espaço físico da casa foi considerado ‘adequado ou excelente’ para 46,4% (n = 13) das crianças e a variedade de estimulação presente no dia a dia da casa foi ‘adequada ou excelente’ para 89,3% (n = 25). A provisão de materiais de motricidade grossa disponíveis em casa foi classificada como ‘menos que o adequado’ para 57,1% (n = 16) das crianças em geral e tal situação foi mais prevalente no grupo de crianças com desenvolvimento questionável (64,7%, n = 11). Em relação aos materiais de motricidade fina, a provisão foi considerada também ‘menos que o adequado’ para 46,4% (n = 13) das crianças em geral.

 

Tabela IV - Fatores contextuais pessoais e ambientais

 

aAET = Auxílio Emergencial Temporário; bAHEMD = Affordances in the Home Environment for Motor Development

 

As variáveis de participação e vida diária foram descritas na tabela V. Os resultados encontrados evidenciam que apenas 10,3% (n = 3) dos participantes frequentavam creche no período da pesquisa, e nenhum praticava esporte. Quanto ao uso de tela, 79,3% (n = 23) assistiam à TV, celular ou tablet, 39,1% (n = 9) das crianças por mais de 2 horas ao dia. A avaliação da participação com base nos dados obtidos pelo instrumento CEDL nos permitiu observar que 51,7% (n = 15) brincavam com frequência com crianças em ambientes internos, sendo mais prevalente entre aquelas com desenvolvimento normal, enquanto as crianças com neurodesenvolvimento questionável brincavam mais frequentemente ao ar livre com adultos. A maioria (75,9%, n = 22) quase nunca realizava passeios de entretenimento, como ir ao zoológico, circo, teatro. Houve maior restrição do grupo com neurodesenvolvimento questionável para brincadeiras ao ar livre com outras crianças (nunca ou quase nunca para 61,1%, n = 11), recreação física ativa, como andar de triciclo e brincar em parquinho (nunca ou quase nunca para 44,4%, n = 8) e atividades sociais, como encontrar com amigos (nunca ou quase nunca para 50%, n = 9).

 

Tabela V - Aspectos relacionados à participação

 

ªNunca/Quase nunca = a criança raramente ou nunca participa da atividade; bDe vez em quando = a criança às vezes participa da atividade; cFrequente/Muito frequente = a criança sempre participa da atividade

 

Discussão

 

Os resultados apresentados apontam para a hipótese de que a investigação dos fatores contextuais (pessoais e ambientais) e da participação são importantes para uma avaliação ampliada do neurodesenvolvimento de crianças pré-termo. Mesmo em uma amostra relativamente pequena, alguns fatores ambientais observados com o uso do AHEMD e de participação trazido pelo CEDL destacaram-se na amostra devido à distribuição diferente entre os resultados do teste de triagem do neurodesenvolvimento. As crianças com neurodesenvolvimento questionável tiveram menor provisão de estímulos de motricidade grossa em casa e maior restrição para brincadeiras ao ar livre com outras crianças, recreação física ativa e atividades sociais.

Diversos fatores pessoais pesquisados já são conhecidos como tendo associação com a prematuridade. Na presente pesquisa, observou-se maior prevalência de alteração do neurodesenvolvimento nas crianças nascidas com menor idade gestacional e com mais morbidades neonatais. Estes resultados corroboram os estudos de Chung et al. [19] e Fuentefria et al. [20], que relataram que baixa idade gestacional e fatores de risco perinatais aumentam o risco para atraso do neurodesenvolvimento.

Quanto aos fatores ambientais domiciliares, observou-se que a variedade de estimulação no dia a dia feita pelos pais foi adequada, no entanto, a provisão de brinquedos de motricidade fina e grossa foi considerada pouco adequada para muitas crianças. Freitas et al. [21] descrevem que o ambiente doméstico pode contribuir para o desenvolvimento infantil através das características gerais do lar e sua disponibilidade de materiais lúdicos, sendo um fator importante para evolução na primeira infância. Outros autores, como Pereira et al. [22], refletem sobre a limitação da disponibilidade de brinquedos para crianças dentro do ambiente domiciliar, e abordam que esta limitação pode refletir na exploração e descoberta de possibilidades. Na visão dos autores, o acesso a diferentes brincadeiras potencializa o desenvolvimento da criatividade, imaginação e formação de novas habilidades, e os tipos de brinquedos podem influenciar nos movimentos finos e amplos, bem como na capacidade cognitiva da criança. Em sua tese, eles concluem que o baixo nível socioeconômico, que limita a aquisição de bens e o acesso a conteúdos educacionais, pode ser um fator de risco para o desenvolvimento.

Defilipo et al. [23] avaliaram as oportunidades do ambiente domiciliar e o desenvolvimento motor de lactentes brasileiros dos 3 aos 12 meses, que foram prematuros, também por meio dos instrumentos AHEMD e AIMS. Em seus achados, observaram oportunidades insatisfatórias de brinquedos de motricidade grossa aos 3 e 9 meses, e de brinquedos de motricidade fina aos 3 e 12 meses. Além disso, houve associação estatisticamente significativa entre baixo nível econômico e a provisão de brinquedos de motricidade grossa e fina aos 3 e 6 meses de idade, apontando para a reflexão que famílias, com pouco poder aquisitivo, possuem piores oportunidades de estímulos ambientais. Assim, os autores concluem que, sendo o domicílio o primeiro ambiente vivenciado pela criança, sua estrutura e oferta de estimulação pode potencializar ou prejudicar o desenvolvimento.

Pela ótica da CIF, uma variável contextual ambiental analisada no presente estudo foi o recebimento de auxílio financeiro governamental. O Bolsa Família, recebido por quase 25% dos participantes, tem como um dos seus objetivos a quebra do círculo intergeracional de pobreza [24] e indica condição de vulnerabilidade social. Segundo Silva et al. [25], características socioeconômicas como pobreza, moradia precária e falta de acesso a recursos de educação e saúde se relacionam com atrasos no desenvolvimento da primeira infância. Msall et al. [26] destacam, ainda, que a combinação de vulnerabilidade biológica causada pela prematuridade e déficits sociais e familiares podem gerar repercussões negativas sobre o neurodesenvolvimento de crianças pré-termo.

Outra variável contextual ambiental analisada foi a frequência em terapias. As crianças que possuíam mais vínculos com terapias eram aquelas com desenvolvimento questionável segundo o instrumento de triagem do desenvolvimento de Denver II. Este dado reforça a importância do uso regular de instrumentos de triagem para avaliação do neurodesenvolvimento, conforme recomendação de organizações nacionais e internacionais de saúde, pois a detecção precoce de alterações é crucial para a indicação de intervenção apropriada [27].

Já em relação à análise da participação, foi possível observar que a maioria das crianças não frequentava creche, mas deve-se considerar que tal situação pode ser uma consequência ainda da pandemia de COVID-19. As diretrizes da OMS para melhorar o desenvolvimento na primeira infância apontam que intervenções que estimulem a leitura de livros e o compartilhamento de brinquedos apropriados para a idade podem aumentar as oportunidades de aprendizado [28]. A OMS reforça que as interações que bebês e crianças fazem com pessoas, lugares e objetos podem exercer grande influência sobre seu cérebro em desenvolvimento [28].

A maioria das crianças deste estudo fazia uso de telas e quase metade por mais de duas horas por dia. Esta realidade caminha na direção contrária do que recomendam as principais publicações científicas sobre o assunto, pois o longo uso de telas pode culminar em alterações de humor, quadros de ansiedade, depressão e/ou comportamentos violentos, alterações visuais e de linguagem, além de problemas para dormir [29]. Este aspecto também pode estar relacionado ao contexto pandêmico, uma vez que, com a necessidade de permanecer em casa, o uso de telas tornou-se um recurso facilitador [29]. Antes da pandemia de COVID-19, já se questionava sobre o impacto das mídias digitais sobre o desenvolvimento das crianças, pois sabe-se que o tempo de exposição às telas pode ser um fator de risco para o sobrepeso, hipertensão e doenças mentais, associado ao fato de favorecer o acesso a conteúdos inadequados e reduzir as relações interpessoais [30].

Os resultados da presente pesquisa evidenciaram também que a frequência de brincadeiras ao ar livre para muitas crianças acontecia apenas de vez em quando, além de passeios de entretenimento e atividades soci ocorrerem nunca ou quase nunca. Bento e Dias [31] apontam que o ar livre é um ambiente extremamente benéfico para o crescimento e desenvolvimento, pois é possível vivenciar a liberdade, movimentos amplos e ter contato com elementos naturais, como a exposição à luz solar e à natureza. Para estas autoras [31], as oportunidades vivenciadas em ambientes externos dificilmente podem ser realizadas e exploradas em casa, e que com o avanço da tecnologia e urbanização, infelizmente o ambiente interno vem substituindo as possibilidades de recreações físicas mais ativas. Estes dados corroboram, ainda, outros achados da literatura que evidenciam que novas rotinas e hábitos de vida foram se construindo a partir do contexto pandêmico [32], período vivenciado pelas famílias estudadas. Desta forma, interações com a natureza e espaços abertos, livres e coletivos tornaram-se práticas cada vez menos frequentes [32].

Os achados aqui expostos evidenciam a importância da avaliação do neurodesenvolvimento segundo uma perspectiva biopsicossocial. O conceito biopsicossocial de saúde, proposto pela CIF, requer que se contemplem todos os domínios envolvidos na compreensão da condição de saúde. No entanto, atualmente não existe nenhuma escala ou ferramenta que aborde todos esses domínios da CIF, sendo necessário utilizar diferentes instrumentos de avaliação já validados para a população infantil, de maneira a sistematizar o uso conforme o modelo integral de saúde [33].

Melo et al. [33] estudaram instrumentos de avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor de crianças de 0 a 2 anos, de baixo custo, que poderiam ser usados em programas de acompanhamento e intervenção, com base no olhar da CIF. Os autores relataram que nenhum instrumento sozinho englobou todos os aspectos da saúde das crianças, mas que a combinação de várias ferramentas de forma integrada, permitiu uma avaliação ampliada, como o uso do Teste de Triagem de Denver II, da AIMS, do AHEMD, entre outros. Mesmo com a utilização de tais escalas, os autores identificaram a necessidade de uma anamnese para complementar os dados, obtendo mais informações familiares e socioeconômicas, fato também detectado em nosso estudo.

 

Conclusão

 

A presente pesquisa explorou domínios que auxiliam a compreensão do neurodesenvolvimento para além do conhecimento sobre marcos motores, de linguagem ou cognitivos. Uma avaliação integral das crianças com fatores de risco levou a uma melhor investigação e compreensão do neurodesenvolvimento desta população, possibilitando intervenção apropriada pela equipe de saúde. Reconhece-se como limitação deste estudo o número de participantes e o fato de ter sido conduzido ainda durante a pandemia, mas após a disponibilidade de vacinas e sem proibição pelo governo de acesso a locais públicos e privados.

Sob o olhar proposto pela CIF, é possível incorporar instrumentos de avaliação de fatores ambientais e de participação para avaliar de forma mais detalhada os aspectos que podem interferir sobre o neurodesenvolvimento de crianças de risco. O uso destes instrumentos em serviços de seguimento deve ser estimulado a fim de ampliar a avaliação e direcionar um plano de tratamento. Isto também permitirá orientações domiciliares mais assertivas e direcionadas para cada família, individualmente, que impactarão positivamente sobre o desenvolvimento destas crianças.

 

Conflitos de interesse

Declaramos não haver qualquer conflito de interesses. 

 

Fontes de financiamento

Não recebemos financiamento.

 

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa: Barros CS, Vieira MF, Ribeiro CTM; Coleta de dados: Barros CS, Vieira MF; Análise e interpretação dos dados: Barros CS, Vieira MF, Ribeiro CTM; Análise estatística: Vieira MF; Redação do manuscrito: Barros CS, Vieira MF, Ribeiro CTM; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Vieira MF, Ribeiro CTM.

 

Referências

 

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