ARTIGO ORIGINAL

Repercussões na dinâmica familiar de idosos com fratura de fêmur

Impact on family dynamics of elderly with hip fracture

 

Ricardo Mazzon Sacheto, M.Sc.*, Maria Adelaide Silva Paredes Moreira, D.Sc.**

 

*Faculdade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Jequié/BA, **Universidade Federal da Paraíba

 

Recebido em 1 de julho de 2015; aceito em 19 de agosto de 2016.

Endereço de correspondência: Ricardo Mazzon Sacheto, Rodovia BR 415, Km 03, s/n, 45700-000 Itapetinga BA, E-mail: ricardomazzon@uesb.edu.br; Maria Adelaide Silva Paredes Moreira: jpadelaide@hotmail.com

 

Resumo

O elevado número de idosos acometidos por doenças crônicas e degenerativas repercute em um grande número de idosos com fratura de fêmur, interferindo tanto em sua saúde como em sua dinâmica familiar. Este estudo analisou as repercussões na dinâmica familiar de familiares de idosos com fraturas proximais de fêmur (FPF) a partir de suas representações sociais. Trata-se de um estudo exploratório, com abordagem qualitativa, embasado na Teoria das Representações Sociais, realizado com onze familiares de idosos acometidos por FPF, oriundos de um Hospital Público e de uma Clínica Privada de Jequié/BA. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os cuidadores familiares desses idosos. Os dados foram processados e analisados com o software Alceste 2010. A análise apontou cinco classes semânticas: funcionalidade de idosos; aspectos técnicos do cuidado; conflitos intrafamiliares; tipos de cuidado com o idoso; dificuldades frente à reabilitação. Verificou-se que os familiares que atuam como cuidadores primários passam por enfrentamentos a partir da FPF no idoso, gerando necessidades de realização de cuidados técnicos, com consequentes dificuldades a serem vivenciadas por essas pessoas durante o período de reabilitação. Esse processo tende a motivar e/ou acentuar conflitos intrafamiliares. Entretanto, também são capazes de motivar um cuidado mais humano com esse idoso. Os resultados podem servir para compreendermos as necessidades dessas famílias, bem como refletirmos sobre nossas ações e pautar nossas práticas para uma promoção e educação em saúde mais humanizada.

Palavras-chave: idoso, fraturas do fêmur, saúde da família, cuidadores.

 

Abstract

The elevated number of elderly patients with chronic and degenerative diseases is reflected in a large number of older people with hip fracture, both interfering in their health and in their familiar dynamics. This study analyzed repercussions on familiar dynamics of relatives of elderly patients with proximal femoral fractures (PFF) from their social representations. It is an exploratory study, with a qualitative approach, based on the Theory of Social Representations, fulfilled with eleven family members of elderly patients with PFF, coming from a public hospital and a private clinic of Jequié/BA in Brazil. Semi-structured interviews with family caregivers of the elderly were held. Data were processed and analyzed with the software Alceste 2010. The analysis showed five semantic classes: nursing functionality; technical aspects of care; family conflicts; types of care with the elderly; difficulties facing the rehabilitation. It was found that family members who act as primary caregivers undergo confrontations from the PFF in the elderly, generating needs of technical care accomplishments, with consequent difficulties being experienced by these people during the rehabilitation period. This process tends to motivate and/or enhance domestic conflict. However, they are also able to motivate a more humane care of these elderly. The results can serve to understand the needs of the families, as well as reflect on our actions and guide our practices for a promotion and education in more humanized health.

Key-words: aged, femoral fractures, family health, caregivers.

 

Introdução

 

O fruto do avanço tecnológico e das técnicas terapêuticas, associados à melhoria das condições de vida, culminou com a vitória da longevidade e com a diminuição da taxa de mortalidade (IBGE) [1]. O percentual de aumento populacional de pessoas idosas foi o que mais cresceu no mundo nos últimos anos [2], com projeção de que o número de idosos venha ultrapassar o de crianças em 2050. O Brasil ocupará o sexto lugar no mundo em número de idosos [3]. Entretanto, vários países, especialmente os em desenvolvimento, ainda estão despreparados para atender de forma satisfatória o crescimento da população idosa [4].

Quando a adoção de políticas e ações preventivas para um envelhecimento mais saudável e assistido são negligenciadas, eleva-se o risco de quedas e fraturas entre os idosos. Essas fraturas possuem potencial elevado de gerar incapacidades e limitações físicas graves repercutindo na independência funcional, bem como na dinâmica familiar [5].

Vários são os fatores que influenciam na qualidade de vida de pessoas idosas, e, entre eles, a independência funcional é crucial para que estas possam desenvolver suas atividades de vida diária e sociais com maior vigor e estímulo [5], constituindo, destarte, um fator preponderante para levar a vida com mais prazer.

As causas preponderantes que originam as quedas entre os idosos, das quais se destaca a fratura proximal de fêmur (FPF), estão ligadas a fatores intrínsecos, como as doenças crônicas não transmissíveis e o uso de medicamentos hipotensivos, e a fatores extrínsecos, relacionados às circunstâncias ambientais e sociais que os idosos enfrentam em seus domicílios ou fora deste, como a presença de piso escorregadio ou tipo de calçado utilizado [5].

Especificamente idosos com FPF apresentam limitações básicas de vida diária, como deitar-se e levantar-se da cama, usar o vaso sanitário, vestir-se ou despir-se, tomar banho e atravessar um cômodo da casa. Isso pode alterar consideravelmente a dinâmica e a qualidade de vida de sua família, uma vez que estes familiares tenderão a se (re)organizar para um (re)direcionamento de cuidados ao idoso dependente [6].

Dentro desse contexto que estão inseridos os familiares dos idosos vítimas de FPF, baseamo-nos na Teoria das Representações Sociais (TRS), fundamentada por Moscovici [7], para buscar compreender as repercussões na dinâmica dessas famílias.

A relação de causa-consequência, estabelecida pela presença da FPF no idoso e suas implicações para os familiares que irão atuar como cuidadores, quando estudada à luz da TRS, busca aprofundar o conhecimento acerca da relação recíproca existente entre o indivíduo e a sociedade, no intuito de compreender como este pensa, age e sente em relação às suas experiências pessoais e coletivas [8]. Esse fato poderá contribuir para um entendimento acerca dessa vivência sob a ótica dos familiares desse grupo de idosos, representando os possíveis enfrentamentos, bem como os aspectos positivos e negativos presentes no ato de cuidar.

Diante do exposto, o objetivo deste trabalho foi analisar as repercussões na dinâmica familiar de familiares de idosos com fraturas proximais de fêmur a partir de suas representações sociais.

 

Material e métodos

 

Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa, no qual foram estudados cuidadores de idosos com FPF, localizados a partir do Hospital Geral Prado Valadares (HGPV) e de clínicas de Fisioterapia do município de Jequié /BA. Este município, segundo dados fornecidos pelo censo de 2010 do IBGE [1], possui população de 151.895 habitantes, dos quais 17.330 habitantes (11%) são pessoas com 60 anos ou mais.

Segundo dados do Portal de Vigilância da Saúde (2010) [9], o HGPV é centro de referência estadual, inserido no SUS, pertencente à rede própria da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia, que engloba o atendimento da Microrregião de Jequié, a qual é responsável por 25 municípios, com uma população total de 492.199 pessoas. Possui capacidade para o atendimento de pacientes de alta complexidade, com várias especialidades, destacando-se, entre elas, as cirurgias ortopédicas e traumatológicas.

A amostra foi levantada entre janeiro de 2011 e dezembro de 2012, tendo como critérios de inclusão dos cuidadores investigados nesta pesquisa: ter um familiar idoso acometido por FPF; ser o cuidador primário do idoso acometido por FPF; aceitar participar voluntariamente da pesquisa; ter condições cognitivas de responder aos questionamentos; o idoso não apresentar histórico de patologia prévia que já o tivesse deixado em condições de dependência funcional anteriormente à FPF. Foram excluídos do estudo os cuidadores que se recusaram a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os que o idoso já não se encontrava mais sob seus cuidados (por falecimento ou outros motivos), bem como os casos que não se encaixaram nos critérios de inclusão.

 

Instrumento e procedimento de coleta

 

Para coleta dos dados foi utilizado um questionário semiestruturado, que envolveu variáveis sociodemográficas, e uma questão norteadora única a ser explorada, a saber: fale sobre as mudanças ocorridas em sua família após a fratura de fêmur sofrida por seu parente.

 

Análise dos dados

 

A análise dos dados empíricos colhidos pelas entrevistas foi realizada com auxílio do software Alceste: 2010 (Análise Lexical Contextual de Conjunto de Segmentos de Textos). Este programa permite realizar análise textual de forma estatística por meio de corpus de dados organizados a partir das entrevistas, que é feito de forma hierárquica e descendente, permitindo análise lexicográfica do material textual. Oferece contextos que são caracterizados a partir de seu vocabulário e pelos segmentos de textos que compartilham este vocabulário, após uma série de procedimentos, possibilita sua análise [10]. Segundo Camargo [10], o programa Alceste toma como base um único arquivo (apresentado em formato txt) ou Unidades de Contexto Iniciais (UCI), que correspondem ao número de entrevistas (corpus) realizadas pelo pesquisador. Assim, um conjunto de UCI constitui um corpus de análise.

 

Aspectos éticos da pesquisa

 

O estudo foi desenvolvido após aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (CEP/UESB), sob o parecer número 50659, com CAAE 03943412.3.0000.0055. Esse está em conformidade com a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, que aborda a pesquisa em seres humanos, respaldado nos aspectos éticos e legais.

 

Resultados

 

Este estudo foi constituído por uma amostra intencional de 11 cuidadores familiares de idosos, após ter sido feito levantamento de 61 pacientes idosos que foram submetidos à cirurgia de fêmur.

Segundo as características sociodemográficas encontradas dos cuidadores de idosos, a grande maioria (n = 10) pertence ao sexo feminino, com idade média de 46,45 anos, desvio padrão de 13,04, com valor mínimo de 29 anos e o máximo de 67 anos, e 63,7% dos cuidadores (n = 7) apresentaram idade de até 50 anos.

Com relação à prática religiosa, pode-se constatar que apenas um cuidador afirmou não possuir religião; dos 10 cuidadores que afirmaram possuir religião (90,91%), a católica foi a mais professada entre os cuidadores (63,63%), seguida pela evangélica (27,27%) e espírita (9,09%).

No quesito grau de escolaridade, foi constatado que 54,54% dos cuidadores possuíam, no mínimo, o ensino médio completo (n = 6). Quanto à ocupação dos cuidadores, 54,54% estavam relacionados com atividades do lar (n = 6), enquanto 36,36% estavam trabalhando (n = 3), e apenas 9,09% se encontravam desempregados (n = 1), estando, dessa forma, voltado exclusivamente para o ato de cuidar.

Os dados apreendidos pelo software Alceste foram constituídos a partir de um corpus formado por 11 Unidades de Contexto Iniciais (UCI), com 562 palavras selecionadas correspondendo aos segmentos de textos dimensionados pelo programa com um aproveitamento de 77.84% dos dados analisados. Foram descartadas as palavras analisadas pelo programa com frequência inferior a 5.

A análise hierárquica determinou cinco classes ou categorias semânticas interligadas entre si a partir da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), segundo sua relação interclasses, sob a forma de dendograma (Figura 1).

 

Figura 1 - Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente.

 

Fonte: Alceste, 2013.

 

Esse dendograma permite estabelecer a relação formada pelas classes/categorias semânticas, representadas a partir das falas dos cuidadores, as quais abordam, no sentido mais amplo, as repercussões geradas na família de idosos com FPF.

 

Discussão

 

Os resultados encontrados neste estudo permitem uma reflexão acerca do perfil do cuidador, bem como sobre as relações vivenciadas entre os cuidadores e os idosos, geradas pela FPF.

Quanto aos dados relacionados ao sexo, a predominância do feminino atuando como principal cuidador dos idosos, também foi constatado em outros estudos [11-13], devido a este ato de cuidar estar enraizado em padrões culturais e sociais, associando os papéis da esfera do lar às mulheres, mesmo quando estas possuem trabalho fora do ambiente domiciliar. Em relação à idade, os dados demonstram uma variação etária significativa dos cuidadores, com média de idade aproximando-se do estudo de Moreira et al. [13].

Outro fator importante foi a prática religiosa, que é relevante quando associamos o estado de fé do cuidador como um fator de suporte mental e espiritual para fortalecer e direcionar os cuidados desenvolvidos junto aos idosos [12].

O quesito grau de escolaridade difere da observada por Nardi e Oliveira [12], em seu estudo, no qual a maioria dos cuidadores estudados possuía menos de três anos de estudo. O fator escolaridade é importante no que diz respeito à qualidade do cuidado prestado ao idoso, uma vez que o cuidador necessita seguir dietas, prescrições e manuseio de medicamentos, que exigem a capacidade de leitura correta das respectivas receitas e orientações profissionais.

No que concerne à situação ocupacional dos cuidadores, os dados correspondem aos encontrados em outros trabalhos [12,14], sugerindo que o ato de cuidar interfere ou impede, de alguma forma, o cuidador de conciliar esta atividade com as extradomiciliares. Esse fato emerge a questão acerca do quanto as políticas públicas de saúde prestam a devida assistência aos cuidadores de idosos com uma incapacidade funcional grave, como a decorrente de uma FPF.

As classes/categorias estabelecidas e apresentadas pela análise do Alceste permitem visualizar um sistema de causa-consequência formado a partir do nível sociocognitivo e das percepções que os cuidadores de idosos acometidos por FPF vivenciaram e apreenderam durante o referido processo de saúde-doença. As experiências vivenciadas possibilitam que esses cuidadores criem suas próprias imagens, proporcionadas pelo cenário gerado pela FPF no idoso, ao mesmo tempo em que facilitam a interpretação dessa nova realidade, onde são (re)incorporadas na qualidade de categorias já familiares a esses sujeitos, servindo, dessa forma, de guia de compreensão e norte para as ações e condutas.

A classe/categoria um – Funcionalidade de idosos é formada por 88 UCE, correspondendo a 31,32% das UCE retidas, com 92 palavras selecionadas. Essa classe expressa representações de cuidadores que abordam aspectos de funcionalidade que o idoso tinha antes da fratura de fêmur, representada pelas atividades que fazia de forma independente, mudando para uma situação de dependência depois desta lesão.

 

“(...) antes da fratura de fêmur, meu pai andava normalmente e trabalhava (...) antes de acontecer essa fratura de fêmur minha irmã era uma pessoa forte, não era doente (...) ela resolvia a casa dela, fazia tudo, era uma pessoa muito boa (...) foi difícil, porque antes da fratura de fêmur meu marido andava, ia para a rua, fazia a feira, levava uma vida normal (...) depois que caiu, mudou tudo, porque passou a não andar de jeito nenhum (...)” (Sujeitos: 3; 7; 10).

 

Para estes cuidadores, o idoso que teve uma fratura de fêmur passa por uma transformação em sua vida e na de sua família, associando o fator queda como o principal mecanismo e agente causador.

 

“(...) ele foi subir em uma escada para trocar uma lâmpada. A escada caiu com ele junto e com isso ele teve a fratura de fêmur (...) minha sobrinha (...) veio para procurar a casa de um sobrinho (...) foi quando ela resolveu ir para encontrá-los e aconteceu a queda (...) ela tinha tentado fazer as necessidades fisiológicas perto da beira da cama, agachada, quando caiu e teve a fratura de fêmur (...)” (Sujeitos: 3; 9; 10).

 

Relatam a dificuldade enfrentada pelo idoso e sua família durante o atendimento no hospital, abordando o tempo prolongado que este precisa ficar internado, aguardando, por vezes, com grande fila de espera, a cirurgia, que é o principal procedimento adotado no tratamento das FPF.

 

“(...) quando minha irmã se lembra, ela chora, por causa das dificuldades que passou; ela disse que não gosta de lembrar (...) ela passou vinte e oito dias no hospital até a data da cirurgia; depois da cirurgia, ficou aproximadamente mais quatro dias internada (...) ficou vinte dias internada no hospital; eu ficava perguntando quando ela iria fazer a cirurgia, e me respondiam que tinha lista de espera, que iria demorar, porque tinham mais pessoas na frente dela (...)” (Sujeitos: 2; 8; 10).

 

Durante essa etapa, ressaltam a ajuda da família no processo de reabilitação, principalmente na figura da irmã, em relação ao cuidador ou ao idoso, e da filha do idoso.

 

“(...) com quinze dias a irmã dela veio de outra cidade para ficar com ela para me ajudar (...) quando o pessoal veio, todo mundo ajudou, e cada dia a gente fazia uma escala, cada dia um ficava no hospital (...) minhas irmãs tiveram que vir de Salvador; uma dormia e vinha de manhã; a outra ficava durante o dia e depois era minha vez (...)” (Sujeitos: 1; 9; 10).

 

Essas falas tratam, na sua essência, da transformação da vida funcional não apenas do idoso, mas também de sua família, já que a limitação imposta pela FPF determina um redirecionamento dos esforços desta em prol da reabilitação desse idoso, o que é determinante para a alteração da qualidade de vida dos atores sociais envolvidos, conforme situações já verificadas em outros estudos [2,12-18]. Além disso, permitem visualizar a FPF no idoso como um agente de transformação do que era antes e do que passou a ser depois, como algo ruim, negativo, gerando dificuldades para o idoso e sua família, levando a um longo processo de recuperação.

A classe/categoria dois – Aspectos técnicos do cuidado é formada por 88 UCE, correspondendo a 31,32% das UCE retidas, com 99 palavras selecionadas. Essa classe traz as representações construídas pelos cuidadores sobre aspectos técnicos do ato de cuidar do idoso acometido por FPF. Dentre esses aspectos, podemos citar: atividades como lavar e passar roupa; gastos financeiros representados nas falas pela palavra dinheiro; conhecimentos técnicos necessários ao cuidador para cuidar com responsabilidade do idoso, de forma a evitar qualquer procedimento tido como errado no ato de cuidar, aspectos que também foram constatados em outros estudos [12-15].

Essas atividades citadas de cuidados técnicos estão ligadas com as relações vivenciadas entre o cuidador e a pessoa que está recebendo esse cuidado – representada nas falas pela figura do idoso ou da sogra –, bem como as interrelações estabelecidas com suas respectivas famílias, constituindo um porto seguro para esses atores sociais envolvidos nesse processo de saúde-doença investigado no presente estudo.

 

“(...) a pessoa que cuida, vai cuidar de tudo, parte médica, levar para o médico, levar para o banco, cuidar de coisas jurídicas, enfim, o cuidar é isso (...) Porque a maioria das vezes você usa aquela água para lavar roupa de urina e fezes do próprio idoso (...) meus irmãos, pai, mãe, estão ajudando. Tem outros parentes que moram fora que dizem que, se precisar de alguma coisa, também ajudam (...)” (Sujeitos: 4; 11).

 

Em seus discursos, os cuidadores abordam a questão da oneração financeira acarretada pelo processo de cuidar, como os custos e gastos extras advindos da FPF, representados pela palavra dinheiro. Este aspecto de aumento de custos financeiros para o cuidador e a família pode ser visto como fator agregador – quando a família se une para divisão de custos –, ou desagregador – quando o cuidador primário fica com os gastos extras para si. Este item é relevante por tratar do suporte financeiro que é necessário para arcar com os custos que advém da FPF no idoso, como os gastos com fraldas, remédios, lavagem de roupas, materiais de higiene e limpeza, entre outros.

 

“(...) em relação aos gastos, a família ajuda (...) com a fratura de fêmur o gasto aumentou bastante, principalmente porque a gente optou por uma alimentação natural, e a família não ajuda (...) mas quem está de fora, não pensa nessas questões dos gastos extras (...)” (Sujeitos: 4; 11).

 

De acordo com os aspectos evidenciados por essa classe, as experiências vivenciadas pelos cuidadores de idosos acometidos por FPF proporcionam objetivar os cuidados técnicos como algo que gera custos financeiros, quando estes cuidados podem servir para agregar ou desagregar a família que teve sua dinâmica alterada em função da reabilitação desse idoso. Ademais, essas imagens formadas, associadas com as atribuições de sentidos, servem para justificar as posturas adotadas pelos cuidadores frente a esses gastos. Porém, as representações sociais elaboradas por esses cuidadores nem sempre são partilhadas por outros indivíduos, representados pela figura de “quem está de fora”, que pertencem a um grupo de pessoas que não vivenciaram a experiência de ter um idoso acometido por uma FPF em seu lar.

A classe/categoria três – Conflitos intrafamiliares – é formada por 47 UCE, correspondendo a 16,73% das UCE retidas, com 80 palavras selecionadas. Essa classe traz representações acerca dos conflitos intrafamiliares motivados e/ou acentuados pelo evento FPF.

As alterações na dinâmica familiar do idoso dependente, como é o caso daquele que é acometido por uma FPF, geram conflitos intrafamiliares, fomentados pelas dificuldades enfrentadas desde o processo de acompanhamento no atendimento de urgência até a fase de reabilitação domiciliar, principalmente devido à sobrecarga sofrida pelo cuidador primário, fato corroborado por outros autores [12-16,18].

Podemos verificar esses aspectos de tensão no ambiente familiar, principalmente para aquele que assume a responsabilidade de ser o cuidador primário, a partir da falta de assistência de outros membros da família, representados pela figura do irmão e do filho, para que possam ser divididas as tarefas direcionadas ao idoso dependente, que está representado pela figura da sogra e da mãe, com a figura do marido podendo estar ligada tanto ao familiar como ao idoso. Esses aspectos tendem a gerar situações de conflitos intrafamiliares, por vezes chegando até mesmo à desagregação.

 

“(...) eram vinte e quatro horas direto com minha mãe (...) fiquei o tempo todo com minha mãe e não a deixei abandonada (...) dessa época em diante passei a viver na minha casa e na casa dela, todos os dias na mesma rotina; a partir disso mudei meus hábitos (...) tive que deixar meus filhos a mercê do pai, que virou para mim e falou que iria tomá-los, alegando que eu não estava tomando conta deles, que só estava vivendo para ela (...)” (Sujeitos: 2; 6; 11).

 

Além dos conflitos entre os membros que poderiam exercer a função de cuidador, também pode ser constatada a presença de tensões entre o cuidador e o idoso, antes ou após a FPF, em que as situações vivenciadas por esses atores sociais podem determinar a relação de um cuidar mais afetivo.

Neste estudo, o ato de cuidar do idoso acometido por uma FPF é desenvolvido por um familiar, os quais devem possuir entre si um histórico de relações interpessoais positivas e/ou negativas ao longo de suas vidas, constituindo nesta situação de cuidado uma chance para modificar um histórico de relações conturbadas, servindo para redesenhar e/ou fortalecer novos e antigos papéis, conforme também foi verificado em outros estudos [12,15].

 

“(...) ela fazia coisas e dizia que era para pirraçar, para eu mandá-la embora; eu respondia que ela só iria sair da minha casa quando Deus mandasse buscá-la, que a casa era dela; ela olhava para mim e me perguntava se eu iria aguentar (...) a gente já tinha mais de um ano sem contato ou aproximação, nem comigo, nem com o outro filho, nem com meu marido, que é filho dela; fui visitá-la de tanto insistirem; achei um quadro interessante, porque quando cheguei ao quarto ela começou a chorar (...)” (Sujeitos: 2; 11).

 

Outro aspecto a ser considerado nessa classe são os possíveis maus tratos que os idosos podem estar sendo submetidos, como em uma situação de obrigação para assinar um documento que ateste a violência que supostamente o idoso possa ter sofrido de um filho, além do próprio ato da agressão em si já constituir um fator grave de violência contra o idoso. Em um caso desses, este idoso pode se ver coagido pela família a prestar depoimento, podendo levá-lo a um estado de depressão, onde as palavras dizer, dizia, falou, perguntei e respondi, se fazem presentes em um dos discursos.

 

“(...) depois olhou para o oficial e falou que iria assinar, mas que não iria fazer nada com seu filho; minha mãe defendia muito meu irmão, mas ele não queria nada com ela, queria apenas aproveitar (...) o oficial falou que só estava fazendo seu papel, que era para ela assinar para que pudesse ir embora; minha mãe assinou a intimação e, desse dia para cá, abaixou a cabeça e não suspendeu mais (...) respondi que não sabia, que não iria falar que cheguei para ver meu irmão a espancando ou empurrando; minha mãe que passava tudo isso para mim, aquilo que o filho aprontava com ela (...)” (Sujeito: 2).

 

Os aspectos apresentados nessa classe permitem uma compreensão acerca dos conflitos intrafamiliares motivados em decorrência da FPF, com repercussões sobre a qualidade de vida do cuidador familiar primário, principalmente devido à sobrecarga das atividades de cuidar sobre uma pessoa da família.

Nesse contexto, Mazza e Levèfre [15] abordam essa questão fazendo um paralelo com o quadro econômico e social que as famílias estão inseridas, no qual as filhas e esposas (consideradas cuidadoras em potencial) têm necessidade de ingressar no mercado de trabalho, gerando um cenário que as impossibilita de manter o idoso sob seus cuidados, o que tende a direcionar o ato de cuidar para apenas uma pessoa da família, em detrimento de um cuidado familiar mais solidário, com divisão de tarefas entre vários constituintes.

A classe/categoria quatro – Tipos de cuidado com o idoso – é formada por 26 UCE, correspondendo a 9,25% das UCE retidas, com 74 palavras selecionadas. Essa classe traz representações acerca dos cuidados à pessoa idosa desenvolvidos na relação entre o cuidador e o idoso acometido por FPF.

A presença de um idoso fragilizado em uma situação de dependência funcional pode agregar atitudes positivas em seu cuidador, além de sentimentos que determinem um cuidado mais pautado em amor, atenção, carinho, paciência e prazer em cuidar, em que uma pequena melhora funcional do idoso durante a fase de reabilitação da FPF se torna motivo de grande felicidade, aspectos também observados por Nardi e Oliveira [12].

 

“(...) e a gente com aquele cuidado ao lado dela; o ortopedista dava risada disso; era eu naquele cuidado com ela, sempre acalmando (...) minha mãe ficou de um jeito que até comida eu colocava na boca dela, igual à criança; ela tomava tudo pelo canudo, e eu naquela paciência; cuidava da minha casa, do meu marido, e o maior carinho eu tinha com minha mãe (...) tudo dela era comigo (...) foi uma felicidade imensa, muita mesmo; ficou assim, não andando totalmente, mas aqueles passos que a gente sabia que estava lá, que estava indo; a coisa estava se elevando, indo para frente (...)” (Sujeitos 2; 6; 10).

 

O cuidado humano inclui atividades como cuidar do idoso na cama, levar para o banheiro e dar banho, levar para o quarto, colocar o idoso na cama, enfim, tudo que envolva práticas ligadas às interrelações humanas entre o cuidador e o idoso, cercadas e embasadas em noções de responsabilidade, dever, carinho, amor, toque.

 

“(...) meu filho vinha, pegava, levava para o banheiro, dava banho, colocava na cama, como se fosse uma criança; enxugava ela toda, colocava fralda, passava creme, colocava na cama (...) eu dava banho nela, trocava, fazia tudo (...) esse cuidado incluía várias atividades; por exemplo, ela não ia ao banheiro, tudo era feito no leito, como banho, alimentação, as necessidades fisiológicas (...)” (Sujeitos: 2; 6; 10).

 

A imagem do profissional de saúde dentro dessa classe é representada pelo ortopedista, que foi responsável pelo procedimento que possibilitou ao idoso acometido por uma FPF a ter uma nova perspectiva de vida, atribuindo a este um significado positivo, que transmite confiança e segurança para o idoso e sua família, levando esperança para essa fase árdua, chegando a ser associada com uma intervenção divina, obra de Deus, com comparação de uma situação de “sair do inferno e ir para o céu”.

 

“(...) hoje em dia o ortopedista me acalenta muito, chegando à reciprocidade; o olhar no olho e dizer que a situação é desse jeito (...) foi quando Deus colocou o ortopedista que fez a cirurgia dela, e a coisa melhorou; parece que a gente estava no inferno e foi para o céu (...)” (Sujeitos: 6; 10).

 

Assim, os aspectos evidenciados nessa classe possibilitam compreender que a tarefa árdua de cuidar de um idoso acometido por uma FPF, mesmo com os percalços inerentes a essa atividade, os quais são fatores determinantes para alteração da qualidade de vida dos envolvidos nesse processo, são capazes de gerar sentimentos positivos nessas pessoas. Isso possibilita a aproximação e união entre os constituintes dessa família, levando a um processo de cuidar mais solidário, afetivo, carinhoso, fortalecendo os elos da célula-mãe da sociedade, nutrindo a esperança de dias melhores para esses idosos e seus entes queridos.

A classe/categoria cinco – Dificuldades frente à reabilitação – é formada por 32 UCE, correspondendo a 11,39% das UCE retidas, com 96 palavras selecionadas. Essa classe expressa representações acerca das dificuldades enfrentadas na trajetória da reabilitação pelos idosos e seus familiares.

O processo de reabilitação física de um idoso acometido por uma FPF, lesão de caráter incapacitante/limitante, possui enfrentamentos a serem vivenciados tanto pelo idoso como por seu respectivo familiar cuidador, constituindo uma fase cheia de dificuldades, sendo um período que possui aspectos negativos e positivos [12,15,18].

Os aspectos negativos se tornam evidentes nas falas dos cuidadores quando estes relatam o sofrimento do idoso por ainda estar sentindo muita dor, sem nada para fazer, sem andar, o que constitui uma etapa difícil a ser vencida por todos, por vezes sendo associada com a proximidade da morte pelo idoso.

 

“(...) meu pai fica triste, ele chora demais, fala que esta sentindo muita dor, que não vai sarar mais, que vai morrer, essas coisas (...) ainda continua difícil, porque de noite ela não dorme, sente muita dor e fica impaciente, e quer andar de qualquer jeito (...) ele me contou que fica pensando em coisas para tentar se matar; quer dizer, não tem nada para fazer e só fica pensando nisso, querendo morrer, que está dando trabalho, se achando mal tratado (...)” (Sujeitos: 3; 8; 11).

 

Em relação ao familiar cuidador, os aspectos negativos estão ligados à sobrecarga do ato de cuidar, como a falta de alguém da família para dar ajuda, sentimento de impotência frente à dificuldade imposta pela FPF, figurada pela situação de não ter o que fazer frente ao quadro imposto pela lesão, além de ficar privado de sair de casa devido à dependência do idoso.

 

“(...) apenas telefona e pergunta coisas sem importância; quando chega aqui, não ajuda nem a dar um banho, nem a trocar; vem chegando e dando ordens. Ninguém da família quer tomar conta (...) meu pai sofre demais, sofre muito; não só ele como todo mundo; ele sente muita dor; é muito triste ver o pai na cama, sofrendo de dor e a gente sem poder fazer nada (...) para mim mudou muita coisa, porque não posso sair (...)” (Sujeitos: 3; 4; 7).

 

Os aspectos positivos relatados nas falas dos cuidadores evidenciam a esperança da reabilitação física e retorno às atividades de forma independente, representada pela imagem do idoso sendo capaz de andar.

 

“(...) mas ainda temos esperança de que ele volte a andar (...) há pouco tempo ele esperava eu chegar do trabalho para dar banho, mas agora que está melhor não quer mais e vai ao banheiro sozinho (...) estou correndo atrás do que ela quer, que é ficar bem, ficar ótima, e estou conseguindo, porque aos poucos ela já esta andando; hoje mesmo já conseguiu andar sem tocar em nada (..)” (Sujeitos: 1; 3; 6).

 

Além destes aspectos, um ponto importante a ser apresentado é que, embora não tenha sido destacado na tabela desta classe, pode ser percebido nos discursos dos cuidadores a questão da presença e do acompanhamento profissional no período de reabilitação, fato também relatado por outros pesquisadores [12-14,16]. Essa proximidade de um profissional representa segurança e motivação durante essa fase de enfrentamentos, tanto à família quanto ao idoso, onde a esperança de voltar a andar, nas falas dos sujeitos deste estudo, está depositada na fisioterapia.

 

“(...) ela está sendo acompanha pelo ortopedista, o mesmo que atendeu ele; todo mês retorna a ele para ver como está a cirurgia, então ela está sendo bem acompanhada (...) o fisioterapeuta é gente boa, o que está levando ela ao crescimento (...) para ele andar tem que fazer fisioterapia (...)” (Sujeitos: 3; 6; 8).

 

      Dessa forma, as dificuldades enfrentadas pela família, com a sobrecarga maior depositada sobre o familiar que atua como cuidador primário, durante a fase de reabilitação do idoso acometido por FPF, geram imagens e interpretações ambíguas (positivas e negativas) nas pessoas que vivenciam esse processo. Esses conceitos elaborados pelos cuidadores servem para orientar e justificar condutas dos cuidadores para com esse grupo de idosos, como as horas dedicadas de cuidado, até mesmo pela noite, tudo em prol da esperança de fazer o idoso voltar a andar.

Embora tenhamos atingido o objetivo proposto, este estudo apresentou limitações, como o número reduzido de participantes, servindo apenas para mostrar a realidade de uma pequena parcela das famílias que passam por situação semelhante. Isso ocorreu devido a dificuldades no levantamento e localização dos idosos, acarretando na não localização de 20 pacientes selecionados a partir dos prontuários, das quais podemos citar: endereço inexistente; endereço de estabelecimento comercial, como a utilização de um restaurante conhecido no centro da cidade de Jequié; incompletude de dados do endereço, como a falta de número da casa e bairro; local informado de forma imprecisa em zona rural de difícil acesso; o fato do idoso não residir no endereço informado; e o idoso ter se mudado de residência sem informar o novo endereço.

Com isso, sugerimos que outros estudos dentro dessa temática sejam realizados com maior número de participantes, inclusive com cuidadores residentes em zona rural. Isso poderia nos fornecer uma melhor compreensão das percepções e necessidades dessas pessoas, com um maior número de variáveis a serem descritas, para caracterizar de forma mais profunda esses cuidadores e os idosos, como o tempo decorrente de cuidado desde o evento FPF no idoso, ou as possíveis patologias que o cuidador possa estar sofrendo enquanto desenvolve as atividades de cuidado, o que pode aumentar ainda mais seu desgaste e tensão, servindo para modificar/exacerbar as representações aqui identificadas.

 

Conclusão

 

Este estudo procurou analisar as repercussões na dinâmica familiar de familiares de idosos com fraturas proximais de fêmur a partir das representações sociais construídas por seus familiares, das quais se apreendeu conteúdos associados à situação funcional, tipos de cuidados oferecidos e as dificuldades frente à reabilitação, tanto para os idosos quanto para seus familiares, em que se apontam cinco classes semânticas: funcionalidade de idosos; aspectos técnicos do cuidado; conflitos intrafamiliares; tipos de cuidado com o idoso; dificuldades frente à reabilitação.

Pode-se constatar que a partir do momento em que o idoso é acometido por uma fratura de fêmur, seus familiares próximos, representados pela figura do cuidador, passam a vivenciar a realidade desse idoso com funcionalidade alterada. Isso cria a necessidade de que o familiar passe a executar atividades técnicas de cuidado, gerando situações de enfrentamento de dificuldades com vistas à reabilitação desse idoso. Observa-se que tais aspectos, por sua vez, podem gerar e/ou acentuar conflitos intrafamiliares. Entretanto, também são capazes de motivar um cuidado mais humano com o idoso que enfrenta o duro processo de reabilitação, servindo para compreendermos melhor as necessidades dessas famílias, bem como refletirmos sobre nossas ações e pautar nossas práticas para uma promoção e educação em saúde mais humanizada.

 

Agradecimentos

 

Esta pesquisa representa parte da dissertação de mestrado de Ricardo Mazzon Sacheto, sob a orientação da Prof.ª Dra. Maria Adelaide Silva Paredes Moreira, pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde, com concentração em Saúde Coletiva, linha de pesquisa Família em seu Ciclo Vital, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Campus de Jequié/BA Brasil.

 

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