RELATO DE CASO

Perfil ventilatório e capacidade funcional de pacientes com mucopolissacaridoses

Ventilatory profile and functional capacity of patients with mucopolysaccharidosis

 

Juliana Leal de Oliveira, Ft., M.Sc.*, Fernanda Warken Rosa Camelier, Ft.,D.Sc.**, Fabíola Ramos Jesus, Ft.***, Rosa Maria Alves Barreto, Ft.****, Palmireno Pinheiro Ferreira, M.Sc.*****, Regina Terse-Ramos, D.Sc.******, Emília Katiane Embiruçu de Araújo Leão, D.Sc.*******, Angelina Xavier Acosta, D.Sc.********, Carlos Maurício Cardeal Mendes, D.Sc.*********

 

*Mestre pelo programa de pós-graduação de processos interativos de órgãos e sistemas (ICS/UFBA), **Pós Doutoral na Universitat de Barcelona-Espanha, Professora adjunta (UNEB-BA), ***Pós-graduada do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde (HUPES/UFBA), ****Hospital Universitário Professor Edgar Santos (HUPES/UFBA), *****Especialista em Fisioterapia Cardiorrespiratória pela Universidade de Tuiuti no Paraná (UTP), Mestre em Medicina e Saúde (UFBA), ******Médica, Professora adjunta do Departamento de Pediatria – FMB (UFBA), *******Médica, Professora adjunta (UNEB-BA), ********Médica, Professora associada nível II do departamento de Pediatria (UFBA), *********Médico, especialista em Saúde Pública - ENSP/UFBA e Estatística Aplicada (UFBA), Professor da Pós-Graduação - ICS/UFBA

 

Recebido em 25 de fevereiro de 2016; aceito em 3 de fevereiro de 2017.

Endereço para correspondência: Juliana Leal de Oliveira, Rua Luís de Camões, Ed. Camões, 101/012, 40270909 Salvador BA, E-mail: jlealfisio@yahoo.com.br; Fernanda Warker Rosa Camelier: fwrcamelier@yahoo.com.br; Fabíola Ramos Jesus: fisiobiola@gmail.com; Rosa Maria Alves Barreto: rmabfisio@yahoo.com.br; Palmireno Pinheiro Ferreira: palmipf@uol.com.br; Regina Terse-Ramos: reginaterse@gmail.com; Emília Katiane Embiruçu de Araújo Leão : ekeleao@yahoo.com.br; Angelina Xavier Acosta: axacosta@hotmail.com; Carlos Maurício Cardeal Mendes: mcardeal@ufba.br 

 

Resumo

Objetivos: Caracterizar o perfil ventilatório e a capacidade funcional de pacientes com mucopolissacaridoses (MPS). Métodos: O perfil ventilatório caracterizou-se pela espirometria e pela forma da caixa torácica. A capacidade funcional foi obtida pela distância percorrida no teste de caminhada de seis minutos (DTC6M) e por questionários funcionais, Childhood Health Assessment Questionaire (CHAQ) e Health Assessment Questionaire (HAQ). Resultados: Dezenove pacientes com MPS, maioria do sexo masculino 16 (84,2%) e com mediana e intervalo interquartilíco (IIQ) de idade de 13,4 (6,3) anos. O MPS VI foi o mais frequente, 57,9%. Alteração na espirometria em 17/18 pacientes, com predomínio para o distúrbio ventilatório restritivo (DVR), 72,2%. Apresentaram alteração da caixa torácica 73,7%. Houve piora da capacidade vital forçada (CVF) (% previsto) com o aumento da idade para todos os tipos (r = -0,37) e, ao retirar da análise o tipo II, a correlação aumentou consideravelmente (r = -0,726). A DTC6M em mediana e IIQ foi de 349 (106,5) metros, com variação mediana percentual, 64,7%, da distância percorrida prevista obtida pela equação de referência para indivíduos saudáveis, 575,2 (128,5) metros. Nos questionários funcionais, 13/19 pacientes tiveram leve comprometimento da capacidade funcional. Conclusão: Houve alterações da função pulmonar na espirometria, da caixa torácica e comprometimento da capacidade funcional.

Palavras-chave: mucopolissacaridoses, espirometria, teste de esforço, atividades cotidianas.

 

Abstract

Aims: To characterize the ventilatory profile and functional capacity of patients with mucopolysaccharidosis. Methods: The ventilatory profile was characterized by spirometry and evaluating the shape of the rib cage. Functional capacity was obtained by the distance covered on the six-minute walk test (6MWD) and, through functional questionnaires, the Childhood Health Assessment Questionnaire (CHAQ) and the Health Assessment Questionnaire (HAQ). Results: Nineteen patients were evaluated with MPS, most males, 16 (84.2%) with median and interquartile range (IQR) age of 13.4 (6.3) years. The most common types were VI, 57.9%. Change in spirometry in 17/18 patients who were examined, with predominance of restrictive ventilatory disorder, 72.2%. 73.7% patients had abnormal rib cage. There was worsening on forced vital capacity (FVC) (% predicted) with increasing age for all types (r = -0.37) and when withdrawing from Type II analysis, the correlation increased significantly (r = -0.726). The 6MWD median was 349 (IQR = 106.5) meters, with median percentage change, 64.7%, of distance traveled expected and obtained by reference equation for healthy individuals, 575.2(128.5) meters. Thirteen among 19 patients were assessed by functional questionnaires with mild impairment of functional capacity. Conclusion: Alterations were found in lung function through spirometry, abnormal rib cage and impaired functional capacity.

Key-words: mucopolysaccharidosis, spirometry, exercise testing, daily activities.

 

Introdução

 

As mucopolissacaridoses (MPS) são doenças hereditárias raras causadas pela deficiência de enzimas lisossômicas específicas, levando ao acúmulo lisossomial de glicosaminoglicanos (GAG) com alteração do metabolismo celular, comprometimento multissistêmico [1], envolvimento respiratório [2] e incapacidade funcional [3].

Entre os fatores relacionados ao comprometimento respiratório, a macroglossia e alterações mandibulares aumentam o risco de obstruções nas vias aéreas. Pode ocorrer depósito de GAG na parede da traqueia, com seu estreitamento, prejudicando a função respiratória [4]; e no parênquima pulmonar, levar a uma doença intersticial crônica que poderá resultar em comprometimento ventilatório restritivo [5]. Anormalidades esqueléticas do tórax e a hepatoesplenomegalia podem prejudicar a mobilidade diafragmática e a biomecânica pulmonar [6], levando a redução de volumes e capacidades pulmonares [5]. A associação entre a função ventilatória e as anormalidades musculoesqueléticas podem exigir um maior esforço para realizar tarefas básicas [7], podendo levar a incapacidade funcional [3], e ambas são alterações que podem estar presentes nos pacientes com MPS.

A correlação entre o comprometimento da capacidade funcional e a gravidade da doença tem sido abordada por instrumentos validados, com objetivo de avaliar a funcionalidade [3] e a tolerância ao esforço durante uma atividade [8]. Sua aplicação é importante em doenças crônicas no intuito de acompanhar a progressão da doença e estabelecer planos terapêuticos individualizados.

A MPS é uma enfermidade com baixa incidência mundial, de natureza crônica, progressiva, incapacitante funcionalmente, com comprometimento respiratório, sendo de grande interesse para a Fisioterapia. Entretanto, ainda existem poucos estudos sobre as alterações respiratórias e a capacidade funcional de pacientes com MPS. Assim, o objetivo deste trabalho é caracterizar o perfil ventilatório e a capacidade funcional de uma série de pacientes com diagnóstico de MPS, no intuito de agregar conhecimento sobre o tema e alertar sobre a necessidade de seu diagnóstico precoce, enfatizando a importância da utilização de instrumentos que acompanhem a progressão da doença, favorecendo o estabelecimento de propostas terapêuticas, destacando a atuação do fisioterapeuta neste contexto.

 

Material e métodos

 

Estudo de série de casos realizado, em 2014, em pacientes com diagnóstico de MPS por amostra de conveniência, acompanhados no Serviço de Genética Médica do Hospital Universitário Professor Edgar Santos – HUPES/UFBA, Salvador/BA. Os critérios de inclusão foram: diagnóstico confirmado de MPS obtido nos prontuários, idade superior a 6 anos, capacidade de deambulação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Os critérios de exclusão foram: a falta de colaboração e compreensão do paciente e desistência da continuidade de participação da pesquisa.

 

Coleta de dados

 

Foram mensuradas: naturalidade, sexo, idade, peso, altura, tipo de MPS, realização ou não de terapia de reposição enzimática (TRE), tempo de tratamento, idade do diagnóstico, acompanhamento fisioterapêutico (avaliações periódicas semanais, mensais e/ou semestrais), alteração da caixa torácica (cifose torácica, escoliose, pectus carinatum e pectus escavatum). As alterações da caixa torácica foram obtidas de dados de prontuários e confirmadas no exame físico, através da avaliação postural por inspeção da caixa torácica. A caracterização do perfil ventilatório foi pela espirometria e seus parâmetros foram coletados: capacidade vital forçada (CVF), volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1), relação VEF1/CVF, fluxo expiratório forçado entre 25-75% da CVF (FEF25%-75%) e, o diagnóstico obtido no exame. A distância percorrida foi obtida no teste de caminhada de seis minutos (DTC6M) e, finalmente, a pontuação nos questionários Childhood Health Assessment Questionaire (CHAQ) e o Health Assessment Questionaire (HAQ).

 

Espirometria

 

A espirometria foi realizada nos maiores de seis anos dentro das normas previstas na literatura [9,10], utilizando o aparelho Koko (PDS Instrumentation Inc., Louisville, CO, EUA). As variáveis analisadas foram: CVF, VEF1 e FEF25-75%, cujos valores foram representados em percentual do previsto para sexo, idade e altura segundo as normas da ATS e a tabela de Kudson para crianças e adolescentes [11,12]. Segundo a literatura foi aceito o nível percentual de 80%, com relação aos valores previstos para altura e sexo, como limite inferior da normalidade para os parâmetros da CVF, VEF1 e da relação VEF1/CVF; para o FEF25-75%, foi aceito o limite inferior de 70% [9,11].

A classificação da gravidade do distúrbio ventilatório de acordo com os resultados obtidos na espirometria foi estabelecida com critérios da literatura [13].

 

Teste de caminhada de seis minutos (TC6M)

 

O TC6M foi utilizado para avaliar a capacidade funcional e realizado com critérios padronizados pela American Thoracic Society (ATS) [14].

A previsão da DTC6M foi obtida através de duas equações de referência brasileiras que são utilizadas para indivíduos saudáveis, uma referente à faixa etária de 6 a 12 anos: DTC6M = 145,343 + (11,78 x idadeanos) + (292,22 x estaturam) + (0,611 x diferença absoluta na FC) – (2,684 x pesokg) [15] e a outra compreendendo a faixa etária de 13 a 84 anos: DTC6M = 622,461 – (1,846 x Idadeanos) + (61,503 x Gênerohomens = 1; mulheres = 0) [16].

 

Health Assessment Questionnaire (HAQ) e Childhood Health Assessment Questionnaire (CHAQ)

 

Os aspectos físicos da capacidade funcional foram avaliados pela aplicação dos questionários validados para a língua portuguesa, o CHAQ, destinado aos pais, e o HAQ podendo ser respondido pelos próprios pacientes quando estes tivessem idade superior a 14 anos [17] e conseguissem responder sozinhos.

A versão do HAQ/CHAQ é composta de 20 perguntas em 8 domínios que avalia atividades do dia a dia: vestir-se e realizar cuidados pessoais, levantar-se, alimentar-se, andar, realizar a higiene pessoal, alcançar objetos e, segurá-los e desenvolver atividades gerais; e a sua pontuação indica o grau de dificuldade para realizar essas atividades (0, sem dificuldade; 1, com alguma dificuldade; 2, muita dificuldade; ou 3, incapaz de realizar) [18,19].

 

Análise estatística

 

O plano amostral foi não probabilístico, assim não foram calculadas estatísticas inferenciais devido a estimativa inadequada do erro padrão em tal circunstância [20]. Foram calculadas as estatísticas descritivas (proporções, medidas de tendência central e dispersão) adequadas ao nível de mensuração das variáveis do estudo. Para se avaliar a correlação entre a variável CVF da função pulmonar com a idade dos pacientes, foi utilizado o coeficiente de correlação de Spearman. Os dados foram digitados no Epidata [21] e analisados no pacote estatístico R.

 

Ética em pesquisa

 

A participação na pesquisa foi condicionada à anuência do paciente ou seu responsável com o TCLE e o termo de assentimento livre e esclarecido nas crianças acima de seis anos de idade, conforme o Art. IV.2 Resolução CNS nº 466/12. O projeto de pesquisa foi aprovado sob protocolo 801.670, pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia.

 

Resultados

 

      Todos os pacientes realizaram o TC6M, um paciente não conseguiu realizar o exame da função pulmonar devido à dificuldade de compreensão da técnica. Treze deles foram avaliados pelo questionário funcional.

 

Características clínico-epidemiológicas

 

Dos 19 pacientes, a maioria foi do sexo masculino, 16(84,2%), com mediana e intervalo interquartílico (IIQ) de idade de 13,4 (7,1) anos, pesando 23,9 (20,5) kg e com baixa estatura, 1,2 (0,3) metros. Houve predomínio de MPS tipo VI com 11 (57,9%) pacientes. A mediana e IIQ de idade do diagnóstico foi tardia, 4(3,5) anos, com idade mediana e IIQ de aparecimento dos primeiros sintomas respiratórios de 3 (2,8) anos, apresentando como sintomas mais referidos a dispneia e o ronco (Tabela I).

 

Tabela I - Características clínico-epidemiológicas dos pacientes com MPS, Salvador/BA, 2014 (N = 19).

 

TRE: Terapia de reposição enzimática; Md: Mediana; IIQ: intervalo interquartílico (percentil 75-percentil 25); Acompanhamento com fisioterapia refere-se às avaliações periódicas desses pacientes; * Um paciente tinha menos de um ano de idade no início da TRE na avaliação e dois valores foram perdidos.

 

Caracterização do perfil ventilatório

 

Os valores espirométricos medianos em porcentagem do previsto foram respectivamente para a CVF, 39,5 (30,5)% e, para o VEF1, 42 (22,5)%. A relação VEF1/CVF obteve mediana de 100 (21,6)% (Tabela II). O tipo de distúrbio ventilatório mais frequente foi o restritivo (DVR) com 72,2% dos pacientes, 22,2% com distúrbio ventilatório obstrutivo (DVO) e, desses, três com VEF1/CVF abaixo de 80% do previsto e um com DVO leve, caracterizado por redução do FEF25-75%; um paciente apresentou função pulmonar normal. A maioria dos pacientes apresentou alteração da caixa torácica, 73,7%, com maior frequência para cifose torácica (35,7%) (Tabela III).

 

Tabela II - Caracterização dos parâmetros da espirometria dos pacientes com MPS, Salvador/ BA, 2014 (N = 18).


CVF = Capacidade vital forçada; VEF1: volume expiratório forçado no primeiro segundo; FEF25-75% = fluxo expiratório forçado; PFE = pico de fluxo expiratório; DVO = distúrbio ventilatório obstrutivo; DVR = distúrbio ventilatório restritivo; Md = mediana; IIQ = intervalo interquartílico (percentil 75-percentil 25).

 

Tabela III - Caracterização da frequência dos distúrbios ventilatórios e da forma da caixa torácica dos pacientes com MPS, Salvador/BA, 2014.

 

DVO = distúrbio ventilatório obstrutivo; DVR = distúrbio ventilatório restritivo.

 

 

Correlação entre a função pulmonar (CVF % previsto) com a idade

 

Houve uma correlação inversa fraca com a idade em relação à CFV (% previsto) para todos os tipos de MPS (r = -0,37), porém ao serem retirados os pacientes com MPS II esta correlação negativa aumentou consideravelmente (r = -0,726) (Figura 1).

 

Figura 1 - Diagrama de dispersão entre a CVF (%previsto) e a idade (anos) de 18 pacientes com MPS.

 

 

Capacidade funcional

 

A DTC6M demonstrou um baixo desempenho mediano e IIQ, 349(106,5)m, com valor mínimo de 216m e máximo de 504m. Já a distância percorrida prevista apresentou mediana e IIQ de 575,2(125,8)m, sendo a variação percentual mediana entre a distância percorrida dos pacientes e a distância percorrida prevista de 64,7% (Figura 2).

 

Questionários CHAQ e HAQ

 

Os nove pacientes aos quais se aplicou o CHAQ apresentaram um leve comprometimento funcional mediano e IIQ, 1,1(0,6), na sua pontuação, sendo o domínio mais comprometido, o vestir-se e cuidar-se, com mediana e IIQ de 3(0,8). Entretanto, 25% dos pacientes apresentaram escore 3, nos domínios comer, alcançar e atividades gerais (Figura 3). Os 4 pacientes que responderam ao HAQ também apresentaram leve comprometimento funcional mediano e IIQ, 0,6(0,1). A pontuação mediana e IIQ obtida para o domínio vestir-se foi 1(1); 0(0) para o domínio levantar-se, andar e higiene pessoal; 1(0) para o domínio alcançar e segurar objetos e 1(1) para atividades gerais.

 

Figura 2 - Boxplot da distância percorrida e distância percorrida prevista em metros dos 19 pacientes com MPS.

 

 

Figura 3 - Boxplot dos valores dos domínios obtidos pelo questionário CHAQ de 9 indivíduos com MPS.

 

 

Discussão

 

A maioria dos pacientes do presente estudo foi do sexo masculino, jovens com baixa estatura e predomínio para o MPS do tipo VI; a idade de diagnóstico foi tardia. O perfil ventilatório foi caracterizado pela presença de DVR grave como o mais frequente e elevada alteração da caixa torácica. A DT6M foi diminuída, e esses valores foram inferiores ao que seria esperado para os pacientes, de acordo com a distância prevista, calculada na equação de referência para indivíduos saudáveis. Na avaliação da capacidade funcional pelos instrumentos CHAQ/HAQ foram encontrados valores discretamente alterados na pontuação geral, nos quais o domínio do CHAQ que obteve maior comprometimento foi o vestir-se e cuidar-se.

O predomínio para o sexo masculino encontrado neste estudo está em conformidade com Lin et al. [22], em que 22/35 pacientes do seu estudo eram do sexo masculino devido sobretudo ao fato de que 12 pacientes da amostra eram MPS tipo II, a qual possui padrão de herança ligada ao cromossomo X [23]. Os indivíduos avaliados foram mais jovens, em concordância com Lin et al. [22] cuja média de idade foi 14,6(5,9) anos, o que pode estar relacionado à baixa expectativa de vida dessa população [23]. A baixa estatura é uma manifestação frequente e foi encontrada neste estudo, assim como em estudos publicados, com média e desvio padrão (DP) de 136,3(14,1) cm no tipo I [24], variação de 103,9-122,8 cm no tipo II [25], e média de 101,9 cm no tipo V [26], provavelmente devido à presença de manifestações musculoesqueléticas e redução do crescimento. Houve preponderância da MPS tipo VI no estudo atual e isso pode se justificar pela frequência elevada dessa doença na cidade de Monte Santo, interior da Bahia [27], além de ser um dos tipos mais diagnosticados no Brasil [28].

A idade média do diagnóstico de MPS I foi tardia, 6,3 anos, na MPS II foi de 7,9 anos e na MPS VI de 4,3 anos [28] que está em conformidade com os achados medianos deste estudo, 4,5(3) anos, para todos os tipos de MPS. A idade de aparecimento dos sintomas pode ser variável, pois, ao nascimento, a maioria das crianças é normal [23] não apresentando manifestações anatômicas e fisiológicas da doença, o que pode interferir no diagnóstico precoce, além do pouco conhecimento sobre essa patologia devido a sua raridade.

Alterações da caixa torácica dos pacientes encontradas neste estudo são também relatadas na literatura [23] e a sua presença pode levar a prejuízos da biomecânica pulmonar e surgimento de doença pulmonar restritiva [29].

O comprometimento da função pulmonar é uma manifestação presente nesses pacientes [26] e o seu prejuízo esteve presente em 57% dos pacientes com MPS [22], já no presente estudo, 94,4% dos pacientes apresentaram essas alterações. Resultados do percentual previsto da CVF abaixo de 80% foram identificados em pacientes com MPS II [26,31], com média (DP) de 74,2 (25,4)% [22], e grave redução média, 49,9 (13,9)%, foi identificada na MPS I [24], corroborando o presente estudo que teve valores medianos ainda mais baixos, 39,5 (30,5)%, indicando a presença de DVR grave para a maioria dos pacientes investigados, 72,2%, conforme a literatura [1,24,22].

A doença pulmonar restritiva caracteriza-se por uma respiração rápida e curta, uma baixa reserva pulmonar pode levar a taquipneia e ao aumento do trabalho respiratório, acúmulo de secreção e atelectasias, insuficiência respiratória crônica e diminuição na capacidade de exercícios [29]. Diante disto, medidas terapêuticas que objetivem otimizar a função respiratória são indicadas, dentre elas a fisioterapia, que ajuda a reorganizar a mecânica ventilatória, melhorar a ventilação pulmonar, manter vias aéreas desobstruídas, diminuir o esforço respiratório, favorecendo a realização de atividades com um menor gasto energético [31].

O valor médio da VEF1 relacionado com a porcentagem do previsto foi abaixo do normal, 73,9 (28,9)%, e menores valores foram encontrados por Wooten et al. [32], com mediana de 56%, que está de acordo com os achados deste estudo em que o resultado mediano foi inferior, 42 (22,5)%. A VEF1, apesar de avaliar basicamente eventos obstrutivos, pode estar reduzida secundariamente à redução da CVF, na presença de DVR isolado [9].

Há citação na literatura da presença da relação VEF1/CVF abaixo de 80% do previsto nas MPS, indicando a presença de DVO [2,32]. Todavia, valores reduzidos de VEF1/CVF não foram referidos por outros autores [24,22] assim como nesta casuística, com mediana de 100%. Porém, três pacientes estudados obtiveram valores abaixo de 80% do previsto, caracterizando a presença de DVO nesses casos. A presença de eventos obstrutivos pode ser justificada pelas alterações anatômicas, deposição de GAG na árvore traqueobrônquica e inflamação crônica ou infecções de repetição [32].

A alteração das vias aéreas de pequeno calibre identificada pelo percentual previsto do FEF25-75% esteve reduzida em 91% dos pacientes com MPS [22], corroborando os achados deste estudo que apresentou valores percentuais abaixo da normalidade para todos os pacientes. Apenas um paciente foi diagnosticado como DVO leve devido à presença da redução isolada do FEF25-75% e um paciente apresentou função pulmonar normal. Resultados normais da função pulmonar também foram encontrados em 43% dos pacientes com MPS [22].

A função pulmonar pode estar reduzida com o aumento da idade em indivíduos saudáveis e isso se torna mais evidente a partir dos 55 anos devido às mudanças nas propriedades elásticas do pulmão [9]. Todavia, nas MPS, o declínio da função pulmonar foi relatado em indivíduos jovens [22], bem como reportado no presente estudo, talvez devido às alterações de caráter crônico e progressivo que acometem esta doença. A piora da função pulmonar de acordo com o aumento da idade obteve uma correlação negativa, (r = -0,47), em relação à CVF (% previsto) para todos os tipos de MPS investigados [22], similar ao encontrado no presente estudo com correlação inversa fraca, r = -0,37. Porém, ao realizar a análise retirando os pacientes com MPS II no presente estudo, esta correlação negativa aumentou consideravelmente (r = 0,726). Talvez pelo fato dos pacientes com MPS tipo II apresentarem a forma mais atenuada da doença e um menor comprometimento de caixa torácica.

A espirometria é fundamental para avaliação da evolução da doença pulmonar, porém não há uma padronização diagnóstica nos indivíduos com MPS devido às peculiaridades da doença [24,26], e a sua realização depende da cooperação e compreensão do indivíduo e de um bom vedamento labial, o que é difícil para os pacientes com MPS devido às alterações nas arcadas dentárias, macroglossia e deficiência cognitiva [25].

Além do exame espirométrico, alguns instrumentos funcionais têm sido aplicados como forma de avaliar a progressão e a gravidade da doença. O TC6M vem sendo utilizado na prática clínica do fisioterapeuta, em pacientes com MPS para avaliação do estado funcional, acompanhamento e avaliação da resposta ao tratamento [23] e em crianças com doenças crônicas [24], visto que ele avalia a resposta ao exercício dos principais sistemas envolvidos na atividade, o cardiopulmonar e musculoesquelético, sendo esta resposta um bom indicador das mudanças da condição funcional de indivíduos [7].

É descrito na literatura valores reduzidos na DTC6M de indivíduos com MPS [25,30]. Na MPS VI, caminharam 268,8 m no TC6M [33]; na MPS II foi identificado DTC6M entre 300-500 m [30] e na MPS I, 25% dos pacientes foram incapazes de caminhar 320 m, caracterizando uma redução da resistência ao exercício [34], concordando com os achados medianos do presente estudo, 349 m. As descrições na população saudável demonstram valores da DTC6M acima de 550 m em diferentes faixas etárias [15,16].

Segundo as equações de referência utilizadas, a mediana e IIQ da DTC6M prevista foi de 577,7 (128,5) m, com diferença percentual mediana de 64,7%, em relação ao valor percorrido de fato de 349 (106,5) m, mostrando que indivíduos com MPS caminharam menos do que o esperado. Não há dados na literatura da utilização de equações de referência para população saudável em indivíduos com MPS, para comparação com o estudo atual, sendo necessária cautela na interpretação desses resultados.

A avaliação funcional através do CHAQ em indivíduos com MPS II demonstrou prejuízo leve da capacidade funcional, com escores mais deficientes para os domínios higiene, alcançar e vestir-se e como pontuação geral no CHAQ/HAQ apresentou valor entre 1 e 2 [35], coincidindo com os resultados do presente estudo. Apesar da pontuação final do CHAQ ter sido levemente alterada, observa-se para os domínios comer, alcançar e atividades gerais que 25% dos pacientes do presente estudo apresentaram estas funções comprometidas com escore de 3. O domínio que apresentou maior deficiência mediana, 3 (0,8), nesse estudo, foi o vestir-se e o cuidar-se. A presença de limitações articulares nos membros superiores pode ser uma justificativa para esses achados [35].

O domínio caminhar não apresentou prejuízo no HAQ/CHAQ, mas, ao se avaliar a tolerância ao esforço pelo TC6M, este se mostrou comprometido, demonstrando uma discordância entre a percepção e o resultado objetivo do teste. A dificuldade na marcha pode acontecer e a necessidade da utilização de dispositivo auxiliar da marcha foi encontrada com uma frequência de 30% em adultos e 25% em crianças [36].

 

Conclusão

 

A avaliação minuciosa nesses pacientes é necessária, tanto do ponto vista respiratório quanto motor, a fim de estabelecer um diagnóstico funcional e instituir programas terapêuticos de acordo com a necessidade individual, enfatizando a importância da atuação do fisioterapeuta que tem como finalidade promover a otimização da função pulmonar, manter e preservar a independência e a funcionalidade.

 

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