ARTIGO
ORIGINAL
Desatenção
à mulher incontinente na atenção primária de saúde no SUS
Inattention to incontinent woman in primary care unit
Flávia Azevedo de
Brito, M.Sc.*, Raquel de Matos Lopes Gentilli, D.Sc.**
*Fisioterapeuta da Unidade do Sistema Urinário do Hospital Universitário
Cassiano Antônio de Moraes (HUCAM-UFES), **Professora Aposentada da
Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Mestrado em Políticas
Públicas e Desenvolvimento Local da EMESCAM–ES
Recebido 31 de
outubro de 2016; aceito 15 de março de 2017
Endereço
para correspondência:
Flávia Azevedo de Brito, Rua Morro do Contorno, 730, Mata da Serra 29168-139
Serra ES, E-mail: flabrito05@hotmail.com; Raquel de Matos Lopes Gentilli: raquel.gentilli@emescam.br
Resumo
O presente trabalho,
de abordagem qualitativa, apresenta como objetivo compreender as implicações
sociais e afetivas de mulheres com perda urinária, que frequentam uma unidade
de Atenção Primária de Saúde e não possuem nenhuma perspectiva de tratamento
nesse nível de assistência. A técnica utilizada para a coleta das opiniões foi a entrevista semi-estruturada e o método utilizado foi a
análise de conteúdo. O cenário do estudo foi uma Unidade Regional de Saúde,
localizada no município de Serra/ES. As entrevistadas foram mulheres com queixa
de perda urinária que se encontravam na Unidade de Saúde para atendimento
médico, totalizando 11 entrevistas. Os resultados apontam que as mulheres
acreditam que a perda urinária tem solução, apesar de desconhecerem os
tratamentos conservadores; expressam descrença nos médicos e no sistema de
saúde, relataram temor pela cirurgia e pela progressão do quadro. Também
emergiram relatos sobre restrições, ajustes de comportamento e limitação na
convivência social como estratégias para conviver com a perda. Nesse sentido,
verifica-se que há necessidade de atendimento deste agravo nas Unidades
Primárias de Saúde e de um diálogo mais aberto e acolhedor dos profissionais de
saúde nesse nível de atenção. Seria importante amparar e cuidar dessas
pacientes nesse nível de assistência a fim de evitar sobrecarga no nível
terciário de saúde e minimizar os gastos com internações, medicamentos e
cirurgias.
Palavras-chave: incontinência
urinária, saúde da mulher, atenção primária, Sistema Único de Saúde.
Abstract
This qualitative study aimed at understanding the social and emotional
implications of women with urinary incontinence who
attend a Primary Care Unit and have no prospect of treatment at this level of
healthcare. The method used was qualitative descriptive and the technique used
for the collection of narratives was the semi-structured interview. The setting
was a Regional Health Unit, located in the city of Serra, Espírito
Santo, Brazil. The interviewees were women with urinary loss complaints that
were in the Health Unit for medical care, totaling 11 interviews. The results
show that women believe that urinary loss is solvable, although unaware
conservative treatments; they express disbelief in the medical and health
system and reported fear for surgery and the progression of the condition. Also emerged reports of restrictions, behavioral adjustments and
limitations in social life as strategies to cope with the loss. In this
sense, there is a need to care of this disease in primary health care
facilities and a more open and friendly dialogue with health professionals at
this level of attention. It would be important to care these women at this
level, to avoid overloading the tertiary level of healthcare and to minimize
the costs of hospitalization, medications and surgery.
Key-words: urinary
incontinence, women's health, primary attention, Health Unic
System.
Nas publicações e
estudos das últimas décadas, a incontinência urinária (IU) tem sido apontada
como o terceiro problema de saúde pública mundial [1,2], e que vem sendo
reconhecida como uma epidemia silenciosa que afeta mulheres em todo o mundo [1,3,4]. No entanto, tem se mantido invisível na atenção
primária no Sistema Único de Saúde.
Em 2002,
incontinência urinária foi definida pela International
Continence Society (ICS) como qualquer perda involuntária de urina, podendo
ser classificada em três tipos: por esforço, decorrente de perda involuntária
de urina mediante esforços físicos; de urgência, derivada da perda involuntária
de urina, precedida pela vontade iminente de urinar; e a mista, que associa
perda involuntária de urina associada à urgência e ao esforço [5]. Três anos
mais tarde, em Paris, no ano de 2005, durante a III Conferência Internacional
de Incontinência realizada também pela ICS, passou-se a considerá-la como o
terceiro maior problema de saúde, logo atrás dos cardíacos e dos cânceres [6].
Embora a IU possa se
manifestar em ambos os sexos, estudos apontam maior acometimento entre as
mulheres [7-9]. Um estudo realizado na Catalunã- Espanha, com uma amostra de
18.126 indivíduos, aponta que mais de 500 mil pessoas têm perda involuntária de
urina e que 77,8% são mulheres [10]. Esses estudos mostram que a prevalência da
IU aumenta com a idade, mas pode acometer mulheres de várias idades e de
diferentes padrões culturais e classes econômicas.
A informação sobre
prevalência de IU em mulheres em todo o mundo é muito variada. Oscilando entre
10% a 55% [5]. No Brasil há dificuldade em se estabelecer a prevalência
nacional, uma vez que a maior contribuição de estudos sobre prevalência da
incontinência urinária feminina se concentra na Região Sudeste, sobretudo nas
Regiões Metropolitanas, conforme foi apontado em um artigo de revisão
sistemática de estudos sobre o tema publicados entre 2000 a 2012 [11]. Dos 22
artigos analisados nessa revisão, 11 se concentravam no sudeste do país, 5 no sul, 4 no nordeste e 2 no centro-oeste, e de acordo com
a maioria desses artigos a prevalência de IU variou de 15,3% a 62,6%. Em outra
publicação recente, Sacomori, Negri e Cardoso [9], realizaram um estudo com 784
mulheres do sul do país e apontaram uma prevalência de IU de 30,7%.
Observa-se que os
estudos brasileiros apresentam dados variados de prevalência de IU, se
concentrando, em sua maioria, na Região Sudeste do país e apresentam tamanho
amostral pequeno haja vista as proporções dimensionais do nosso país. Nesse
sentido, para que esse tema seja incluído na realidade de vida e de saúde da
população brasileira, serão necessários mais estudos epidemiológicos,
levando-se em consideração nossa diversidade cultural e nossa dimensão
geográfica.
Estudos apontam que
embora a IU seja um agravo frequente na vida das mulheres, comprometendo sua
qualidade de vida [12, 9], a busca por tratamento ainda não é priorizada
[13,14]. Os mesmos autores mencionam que a busca por solução nem sempre é
priorizada e apontam também que existe necessidade de maior conscientização e
informação de mulheres e de profissionais de saúde quanto aos benefícios de
tratamentos conservadores.
Os
dados sobre
prevalência e falta de qualidade de vida em mulheres brasileiras
com IU sugerem
que os Serviços de Atenção à Saúde
da Mulher devam ser expandidos, sobretudo na
Atenção Primária (que funciona como importante
porta de entrada no Sistema
Único de Saúde). Através da
incorporação de medidas de prevenção e
reabilitação
direcionadas à incontinência urinária na
população feminina geral, acredita-se
que ocorrerá maior resolubilidade no atendimento, com menos
gastos para o SUS
como serviços da Atenção Terciária.
Para tanto,
Delarmelindo, Parada, Rodrigues, Bochi [8], consideram que seja necessário a inserção de ações públicas destinadas à saúde da mulher,
com intervenções mais incisivas na prevenção e na reabilitação, para contribuir
com a resolubilidade deste agravo.
Nesse contexto, a
preocupação com as implicações sociais e emocionais das mulheres que vivenciam
a perda urinária e não possuem perspectiva de tratamento na atenção primária,
constitui-se num desafio bastante significante em nosso país. Deve ser
igualmente objeto de reflexão sistemática em nosso meio.
Convém mencionar que,
no Brasil, os tratamentos oferecidos pelo SUS para IU, são cirúrgicos ou
medicamentosos. Os tratamentos conservadores, na maioria das vezes, são
ofertados apenas pelo setor privado [8], que como já mencionamos acima,
sobrecarrega o Setor Terciário do SUS e contradiz seus princípios de
universalidade e integralidade.
Para que a população
feminina dos segmentos mais pobres da população, possa
ser auxiliada nesse processo saúde-doença também se faz necessário que os
profissionais de saúde estejam empenhados na identificação e tratamento da
incontinência urinária [15], desde seus primeiros sinais e sintomas.
Nesse sentido, o
objetivo deste estudo foi compreender as implicações sociais e afetivas de
mulheres com perda urinária, que frequentam uma unidade de Atenção Primária de
Saúde e não possuem nenhuma perspectiva de tratamento para este agravo nesse
nível de assistência.
O presente trabalho
foi realizado por meio de uma pesquisa qualitativa, com mulheres que
apresentavam queixa de perda urinária e que se apresentavam com consulta
ginecológica agendada em uma Unidade Regional de Saúde, localizada no município
de Serra/ES. A escolha desta abordagem se deu pelo fato desta possibilitar a
apreensão dos sentimentos, afetos e opiniões destas usuárias sobre o assunto. O
estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Superior de
Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (CEP- EMESCAM), através do
parecer 848/217 de 2014.
No período
estabelecido por conveniência (01 a 30 de janeiro de 2015), foram entrevistadas
mulheres que estavam aguardando atendimento médico. Nesta etapa, a pesquisadora
utilizou como instrumento um questionário, com a finalidade de identificar as
mulheres que apresentassem a queixa de perda urinária. As perguntas utilizadas
foram extraídas de um questionário específico para incontinência urinária
(ICIQ-SF), validado e traduzido no Brasil por Tamanini et al. [16] em 2004, sendo utilizadas três das quatro perguntas do
ICIQ-SF, devido ao objetivo que se tinha nesta etapa.
Foram incluídas
apenas as mulheres que apresentavam queixa de perda urinária e que aceitaram
participar da pesquisa, sendo excluídas por razões metodológicas as mulheres
com problemas neurológicos, as menores de 18 anos, as gestantes e as mulheres
com alterações cognitivas, que demonstrassem impossibilidade de compreensão das
perguntas.
As mulheres que
apresentavam a queixa de perda urinária foram então convidadas a participar da
segunda fase do estudo, a fase qualitativa. Nesta fase, o instrumento utilizado
para a coleta dos dados foi a entrevista
semi-estruturada, realizada em um consultório da própria Unidade de Saúde em
dias e horários agendados e que atendessem à disponibilidade das participantes.
Foi assegurado sigilo e não identificação das entrevistadas, para as quais se
utilizou códigos (M1 a M11).
As entrevistas com as
histórias coletadas foram gravadas e transcritas integralmente para posterior
tratamento e, de acordo com o método de análise de conteúdo, empregado por
Minayo [17], desdobra-se nas etapas de pré-análise, exploração do material e
tratamento dos resultados obtidos e interpretação.
O número de entrevistados foi definido pela estratégia que utiliza o critério de saturação, que ocorre quando os participantes passam a repetir conteúdos e não mais acrescentam informações novas à pesquisa. Assim, a amostra foi formada, desta forma, pelas 11 entrevistas realizadas às mulheres com incontinência urinária, que aceitaram participar.
O único documento que
ampara a mulher incontinente no Brasil é uma publicação do Ministério da Saúde
denominado Manual de Atenção à Mulher no Climatério/Menopausa [18]. De acordo
com este documento, a incontinência urinária é um sério problema de saúde que
afeta milhões de pessoas, sobretudo as mulheres e, entre estas, as mais velhas.
O documento apresenta os muitos tratamentos utilizados para esta disfunção,
como é o caso das terapias comportamentais, treinamentos dos músculos do
assoalho pélvico, tratamento medicamentoso e cirurgia. Indica ainda que a
conduta deve ser orientada pela natureza e intensidade da disfunção.
O Ministério da Saúde
destaca a IU como uma disfunção comum no climatério, entretanto, não oferece,
infelizmente, ainda nenhuma possibilidade terapêutica na Atenção Primária. De
acordo com pesquisa realizada por Vaz [19], a maioria das mulheres
diagnosticadas com IU recebe apenas tratamento medicamentoso na rede pública ou
é referenciada para o nível secundário e/ou terciário
de atenção à saúde, fato que gera extensas listas de espera nos serviços
especializados de exames e cirurgias e grande demora na resolubilidade dos
casos.
Num estudo
desenvolvido em Cuba [20] a IU surge como um problema que pode afetar o
desenvolvimento social e econômico das pacientes, tanto nos aspectos pessoais
como nos aspectos coletivos. Os autores destacam que as mulheres atualmente
ocupam posição de destaque na sociedade e que este problema pode levar ao
isolamento com perda da interação social. Para uma sociedade como a de hoje, é
inadmissível conviver com a incontinência sem se buscar uma resposta na forma
de tratamento de saúde.
Através da análise
das entrevistas de nossa pesquisa percebeu-se que as mulheres com incontinência
urinária não recebem atendimento ou orientação complementar, sobre este agravo,
assim como orientações sobre o treinamento do assoalho pélvico, no nível
Primário de Saúde, fazendo com que se sintam desamparadas, inseguras e
temerosas.
Das entrevistas
emergiram relatos de impotência, de descrença nos profissionais médicos e no
sistema de saúde. Essas mulheres sentem-se perdidas, sem saber a quem procurar
para amenizar sua perda urinária.
E isso
ai que eu falei com você, se sente assim, como fala a palavra certa, impotente,
porque nao sabe a quem recorrer né? Porque os médicos quando é um caso assim
que eles não sabem empurram pra um, empurram pra outro e vão empurrando. (M10)
O controle da
continência urinária surge na infância como um sinal de evolução e de
autonomia. Perder o controle sobre a eliminação da própria urina na vida adulta
pode expor as mulheres a situações extremamente embaraçosas, evocando sensação
de impotência, revolta e medo.
Perder o controle
sobre o ato miccional na vida adulta pode expor essas mulheres a comportamentos
não esperados para esta fase de sua vida, evocando prejuízos socioafetivos.
Quando experimentam a perda urinária, estas são remetidas a um processo
esperado somente na infância. Sentem como se vivecem um quadro de retrocesso,
um processo de infantilização.
Quando perguntadas se
achavam importante tratar a sua perda urinária, todas as mulheres participantes
da pesquisa afirmaram que sim, e apresentaram relatos que espressavam medo da
progressão do quadro.
Expressaram uma
expectativa de se verem livres de um problema que as comprometem social e
afetivamente. E em contrapartida relatam descrença nos profissionais médicos,
que quando não substimam o problema, normalmente as oferecem como única
alternativa de tratamento a cirurgia, após agravamento do quadro. Entre o
inicio dos sintomas e a situação adequada à cirurgia, não tem sido oferecido
nada no SUS. Algumas pacientes assim se referiram ao assunto:
A médica falou não,
não, isso é normal. Se aumentar a gente vê. Não deu muita importância para o
que eu falei, quando aconteceu aquilo eu me senti constrangida eu marquei uma
consulta para falar: oh aconteceu assim, assim e ela falou que acontece, que é assim mesmo, mas se aumentar a gente vê o
que pode ser feito.
(M11)
Fui numa médica,
ginecologista, falei desse problema que tenho aí ela falou: ah mais pra isso
tem que fazer períneo né? E o posto não faz isso, ai deixei
pra lá, não mexi com isso mais não. (M4)
Nota-se que o
comportamento adotado por alguns médicos da Atenção Primária desperta nelas uma
sensação de constragimento e impotência, pois não existe orientação, nem
encaminhamento a outro serviço. Procuram um profissional de saúde na tentativa
de se verem livre do problema, e ouvem daqueles que deveriam orientar e/ou
atender que não tem remédio. Ou ainda, que a perda urinária, que tanto
incomoda, é normal, as coloca na posição desconfortável de vítimas de um
sistema de saúde que não ampara a mulher incontinente.
No estudo publicado
por Higa et al. [21], foi observado que as mulheres
tentam conviver com a IU ao perceberem que não conseguem buscar ajuda, e que,
quando procuram pelo serviço médico, vivenciam um turbilhão de sentimentos que
bloqueiam até sua fala.
Para falar desse
assunto com o profissional de saúde já é necessário vencer as barreiras
impostas pela vergonha e pelo constrangimento e não receber deles um
direcionamento, uma conduta, as fazem se sentir no
limbo do SUS, perdidas e sem saber o que fazer. Uma entrevistada, assim se
expressa:
Eu esqueço
de falar com a ginecologista o que eu tô passando. Toda vez que eu venho
eu esqueço de falar sobre isso(risos). Não é bem
esquecimento, as vezes é até uma maneira de vergonha
de falar né, de falar assim, tá acontecendo isso, isso, eu tava pensando em
procurar para falar porque não é normal. (M5)
O problema da IU tem
sido frequentemente subestimado e negligenciado na atenção à saúde, mesmo com o
reconhecimento do SUS sobre a necessidade de realização de procedimentos
diferenciados. A falta de receptividade dos profissionais de saúde a este
assunto e a não apresentação de uma alternativa de tratamento conservador
representa uma falha na orientação definida pelos serviços públicos para um
agravo de saúde tão comum na vida das pessoas em idade mais avançada, sobretudo
nas mulheres.
A falta de
acolhimento, orientação e prevenção na evolução deste agravo de saúde oferecem
sensação de desamparo à mulher incontinente que almeja tratamento, atenção,
cuidado e respeito da gestão do SUS e de seus profissionais, tornando-se
desafiador para as mulheres dependentes do SUS, conviverem com a mesma sem
nenhuma perspectiva de tratamento e tampouco de melhora
Tais sentimentos ja
foram detectados num estudo realizado em 2010 [21] com mulheres brasileiras.
Este indicou que a mulher com perda urinária esconde o seu problema devido à
vergonha e a postura de alguns profissionais pode estar contribuindo para o
aumento dessa inibição, tornando-se um impedimento para que a mulher se sinta a
vontade para expressar suas queixas durante a consulta. Destacou também, que a
falta de conhecimento dos profissionais sobre a IU, pode levar a situações de
subestimação das queixas e gravidade. Revela ainda uma indiferença profissional
injustificável, para com este agravo de saúde.
A falta de
conhecimento sobre o assunto de uma parcela significativa de profissionais de
saúde e a carência de programas de saúde, especificamente voltados para a
promoção, prevenção e tratamento de mulheres acometidas pela IU, merece
destaque. Revelam uma necessidade de novas estratégias de ação e mecanismos de
abordagem, sobretudo na Atenção Primária. Tais mudanças poderiam diminuir os
encaminhamentos para o nível secundário e nível terciário ou de alta
complexidade, conforme já indicados anteriormente. Ainda se destacam no SUS
opções terapêuticas para IU, como os medicamentos e as cirurgias, em detrimento
de intervenções conservadoras, muito mais eficazes para tratamento no início
dos acometimentos.
Reitera-se aqui que o
treinamento dos músculos do assoalho pélvico (TMAP) possui nível “A” de
evidência comprovada por estudos, além de ser preconizada pela ICS como
tratamento conservador de primeira escolha para mulheres incontinentes,
conforme apontam [22,19] entre outros. Trata-se de uma alternativa de baixo
custo, eficaz para controle da incontinência urinária e de fácil manejo, que
poderia ser realizada na atenção primária. Tal forma de tratamento constitui-se
uma medida necessária para a melhoria da qualidade de vida desse segmento da
população
Vaz [19] reconhece
ainda que o treinamento dos músculos do assoalho pélvico como o tratamento de
primeira escolha para mulheres com incontinência urinária, não tem sido
usualmente realizado na Atenção Primária. Esta autora realizou um dos poucos
estudos sobre o assunto, que analisa a efetividade de duas possibilidades
terapêuticas para esse nível de atenção. Segundo Vaz [19] existe duas
possibilidades de assistência à mulher incontinente na Atenção Primária: uma é
o tratamento domiciliar individual apenas e a outra é o tratamento em grupo na
Unidade Básica de Saúde, associado ao atendimento domiciliar. Ambas as formas
demonstraram ser efetivos para o tratamento de mulheres com IU neste nível de
atenção. Esse resultado abre novas possibilidades terapêuticas, permitindo a
prática de orientação e a oferta de novas possibilidades de atenção e
reabilitação para este segmento da população.
Convém
destacar
também a importância da educação em
saúde para a condução de orientações
sobre
a saúde da mulher, que incluam os aspectos preventivos e
promocionais da
incontinência urinária, salientando que novos estudos
são necessários para
identificar possibilidades de recursos terapêuticos eficazes para
IU na Atenção
Primária, bem como estratégias de gestão que
padronizem condutas de
esclarecimento e orientação de profissionais de
saúde para interferem na
Atenção Primária.
Nesse sentido,
Delarmelindo [2] recomenda que no escopo do Programa de Saúde da Mulher sejam
fortalecidas as ações voltadas ao diagnóstico, prevenção e tratamento da IU por
toda a vida, salientando que as mulheres devem ser encorajadas a verbalizar
suas perdas urinárias para que estas não lhes sejam mais consideradas
vexatórias. Ressalta também que nesse programa sejam incorporadas práticas
terapêuticas que promovam o apoio a problemas de saúde como a incontinência
urinária.
O que parece
inconcebível é que, em pleno século XXI, encontremos mulheres com perda
urinária dentro de uma Unidade de Saúde sem saber o que fazer para amenizar sua
perda e profissionais que não saibam como proceder em decorrência da ausência
de programas para esta finalidade.
Isso não existe, tem
tratamento com certeza tem, porque se a medicina evoluiu tanto, não evoluiu
para isso?
(M10)
A IU é hoje um
problema de saúde que afeta sobretudo as mulheres em
diferentes faixas etárias e que acarreta prejuízos sociais, econômicos e
afetivos. Nesse sentido, a pesquisa que realizamos ratifica a importância de um
melhor acolhimento desta queixa nesta parcela da população, salientando que a
paciente deve sempre ser vista em sua totalidade. A falta de um tratamento
conservador, específico para mulheres com IU, oferecido pelo SUS, fere a
dignidade humana e o direito pleno ao acesso à saúde desta parcela da
população.
Enfrentando
a incontinência urinária
Nas
entrevistas, foi
observado que as mulheres criam estratratégias para minimizar o
desconforto
provocado por este agravo de saúde. De seus discursos emerge o
registro sobre
uma sensação de impotência, de descrença nos
médicos, nos demais profissionais
de saúde e no sistema de saúde. Essas mulheres declaram
ficar perdidas, sem
saber a quem procurar para amenizar sua perda urinária. Foi
possível perceber
no cotidiano da assistência primária que existem muitas
barreiras para a
efetivação do cuidado individualizado e integral à
saúde mulher, visando à
promoção da sua saúde. A assistência
à mulher com incontinência urinária não
contempla os princípios básicos do SUS de acessibilidade,
nem tampouco o da
integralidade.
Entre seus relatos,
registrou-se que as mulheres percebem que são necessárias mudanças no seu
comportamento, quando entendem que a IU acarreta alterações no seu dia a dia.
Quando tomam consciência disso passam a adotar estratégias para conviver ou
para melhor administrar as perdas urinárias. Relatam auto-aprisionamento
doméstico e expressam desejo de se sentirem livres novamente. Expressam também
temor de ficarem gripadas, uma vez que os episódios de tosses e espirros mais
frequentes agravam momentaneamente a IU. Manifestam desejo por mais liberdade
para ir e vir, sem se preocuparem em levar roupa extra ou ficar com odor de
urina.
De acordo com
pesquisa de Higa et al. [7], as estratégias como forro,
fralda, ficar com roupa molhada ou correr para o banheiro, podem se constituir
em barreira psicológica para o convívio social, uma vez que são atitudes e
comportamentos próprios da infância. A falta do controle dos esfíncteres
constitui uma situação típica das crianças e no adulto pode ser percebido como
um “defeito”, portanto como algo não permitido.
As mulheres
participantes do estudo manifestaram sentimentos de vergonha, contrangimento,
tristeza e uma preocupação com a vida amorosa, como observado nos discursos a
seguir.
Nossa eu me sinto
muito envergonhada, eu me sinto mesmo, sei lá, parece que eu não sei me cuidar,
parece né? Nossa essa mulher tá relaxada. Ta mijando
pra tudo quanto é lado, eu fico com vergonha. (M11)
Ah eu me sinto um
pouco triste, porque eu penso assim: e se eu quisesse arranjar um namorado? (M7)
A perda do controle
da urina em relação ao tempo e lugar apropriados, submete essas mulheres a
convivenciarem com sentimentos de baixa auto-estima
por situações que podem parecer desleixo e de falta de cuidado com o próprio
corpo. Perder urina torna-se uma ameaça ao convivio social.
De acordo com
Delarmelindo [2], em sua pesquisa, as entrevistadas registraram se perceberem
transgredindo ao preceito socialmente estabelecido - de que só crianças podem
urinar na roupa e usar fraldas -, pode promover sofrimento psíquico e
comprometer a autoestima da mulher que vivencia a IU. A perda de urina
inesperada evoca nessas mulheres medo da rejeição. Temem estar em alguma
situação social e inesperadamente sentirem vergonhadas pelo descontrole da
urina e pelo receio de exalarem odor desagradável, e em decorrência disto,
acabam por se privarem de relaciomentos sociais, e inclusive amorosos.
Também
foram
encontrados entre as entrevistas realizadas, relatos de
restrições, ajustes de
comportamento e limitação da convivência como
estratégias para conviver com a
perda. Relataram que criam desculpas para não saírem com
seus familiares,
temendo fazê-los passar vergonha pela exposição
pública à perda urinária. São mulheres
que deixam de viajar e se queixam da dificuldade de conviverem com a
perda
urinária.
Ai eu falei como é
que eu vou para São Paulo desse jeito de ônibus? Não tem como, é difícil, não
tem como.
(M2)
Você já imaginou você
está com uma visita em casa, com pouco você sai para o banheiro e volta com
outra roupa. Ai a pessoa fala ué para que você trocou
de roupa? O que você vai responder? Ah porque eu fiz xixi na roupa? Eu não vou
responder isso. Vou ficar quieta sem dar resposta, está entendendo? Faço de
conta que não entendi, não é verdade? (M10)
Conviver com a IU sem
nenhuma perspectiva de reabilitação, leva a mulher a modificar comportamentos
como uma tentativa de se adequar às impertinências da perda, adotando
estratégias que podem acarretar prejuízos socioafetivos. Nesse momento entra em
cena uma vida mais solitária, repleta de privações, com limitação de
convivência, medos e restrições sociais.
As mulheres
incontinentes participantes deste estudo seguem carentes de cuidados, mas confiantes
de que há uma luz no fim do túnel. Suas queixas e seu problema urinário
precisam ser ouvidos e solucionados, garantindo assim a efetividade dos
princípios do SUS, de equidade e integralidade de assistência.
Este estudo não visou
estender suas conclusões para a totalidade das mulheres com incontinência
urinária no cenário nacional, fazendo generalizações, por utilizar de abordagem
qualitativa e, portanto, por ter sido realizado com uma amostra não
probabilística de mulheres com perda urinária. No entanto, a profundidade das
questões levantadas e analisadas à luz das teorias existentes sobre o assunto
trouxe elementos muito importantes para a compreensão da situação da mulher
incontinente e, sobretudo, das dificuldades por elas vivenciadas diante da
ausência de atendimento na Atenção Primária de Saúde Pública.
Refletindo
sobre as
políticas voltadas à saúde da mulher no Brasil,
observa-se que houve uma
evolução desde a sua implantação,
através da ampliação do olhar sobre saúde
da
mulher brasileira focada na sua condição reprodutiva,
para aspectos muito mais
amplos de sua saúde. No entanto, nota-se ainda uma
desarticulação entre a
proposta e a execução das ações de
saúde, o quê deixa ainda uma sensação de que
muito ainda precisa ser feito para que a mulher seja vista em sua
totalidade.
Acredita-se também que o próprio SUS necessita encaminhar
alternativas efetivas
para solucionar o problema em seu âmbito, pois como está,
apenas vem sendo deixado ao plano dos preconceitos sociais, de um lado, ou dos
procedimentos radicais, do outro.
O presente estudo
revelou que as mulheres acreditam que a perda urinária tem solução apesar de
desconhecerem os tratamentos conservadores, denotando que confiam nas
possibilidades dos serviços do SUS. Os tratamentos conservadores para a
incontinência urinária na mulher existem e podem ser uma ferramenta eficaz e
resolutiva, uma vez que são simples e fáceis de serem implantados. Se fossem
oferecidos nos serviços de Atenção Primária à Saúde, poderiam contribuir com a
redução de cirurgias, ocupação de leitos hospitalares e gastos com
medicamentos, o que resulta em mais custos para a gestão pública da saúde e
riscos secundários à saúde da mulher.
Destaca-se que, para
tanto, há necessidade dessas pacientes serem melhor
orientadas por profissionais de saúde, como médicos, fisioterapeutas,
psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, os quais poderiam contribuir,
não só para a compreensão do quadro de incontinência, mas também possibilitaria
conhecer melhor as possibilidades de condução do tratamento e para uma vida com
mais qualidade nos aspectos sociais e afetivos.
A pesquisa recolhe
informações que ratificam a importância da capacitação de profissionais da
saúde, a fim de nortear os profissionais de saúde da Atenção Primária na
condução das ações preventivas e promocionais da IU, salientando a importância
do atendimento à mulher incontinente não apenas na menopausa, mas em todas as
fases de sua vida, tendo em vista que o problema se agrava na menopausa, mas
não é um problema exclusivo deste período da vida da mulher.
Espera-se
que este
estudo venha a contribuir para a discussão e a
superação das limitações dos
serviços públicos em relação à
incontinência urinária e que esta não fique
apenas subestimada ou negligenciada pelos profissionais de
saúde. Espera-se
também que a voz dada às pacientes possa contribuir para
que os profissionais
se sensibilizem em relação à necessidade de
acolhimento das pacientes, e que os
governos possam apoiar e fortalecer o Programa de Saúde da
Mulher, assistindo
adequadamente a mulher incontinente em todos os níveis de
assistência, de forma
que a perspectiva de tratamento e acompanhamento contribua para que
essas
mulheres saiam do limbo do sistema de saúde brasileiro.