REVISÃO
Relação
entre consumo de álcool e depressão em estudantes de medicina
Relationship between alcohol abuse and depression in medical students
Marina F Boer*, Deomara
C Damasceno Garcia**, Débora C Damasceno*
*Laboratório de Pesquisa Experimental de Ginecologia e Obstetrícia, Programa
de Pós-graduação em Ginecologia, Obstetrícia e Mastologia, Faculdade de Medicina
de Botucatu, Unesp, Botucatu/SP, **Psicóloga e Psicanalista,
São Paulo e Sorocaba/SP
Recebido 27 de maio de
2016; aceito 15 de julho de 2016
Endereço
para correspondência:
Profa. Dra. Débora C Damasceno, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Faculdade
de Medicina de Botucatu_Unesp, Distrito de Rubião Júnior
s/n, 18618-970 Botucatu SP, E-mail: damascenofmb@gmail.com, Marina F Boer: mah.fb@hotmail.com,
Deomara C Damasceno Garcia: deomara@hotmail.com
Resumo
Muitos estudos abrangem
a questão do abuso de álcool por estudantes universitários, que podem ser influenciados
pela cultura, busca de prazer e outros fatores relacionados ao meio social ou emocional.
Entre os estudantes de medicina, este alto consumo pode ocorrer em função da exposição
à intensa carga horária do curso e do frequente contato com doenças, dor física
e a morte. Ao observar esses fatores, presume-se que, assim como há íntima relação
entre os sintomas psiquiátricos e as desordens relacionadas ao consumo de álcool
nos adolescentes, bem como na população em geral, isso pode ocorrer com estudantes
de medicina, considerando o abuso e/ou dependência ao álcool como um mecanismo para
lidar com os sintomas da depressão. Dessa forma, este estudo tem como objetivo realizar
uma revisão de literatura sobre a relação entre depressão e a incidência de abuso
de álcool nos estudantes de medicina. No total, 13 artigos foram selecionados para
leitura íntegra por serem acessíveis e apresentarem palavras-chave relacionadas
ao assunto e dados pertinentes para o objetivo geral a partir de seus resumos. Após
a leitura desses artigos, foi verificada contradição quanto à relação direta entre
a depressão e o abuso de álcool nos estudantes de medicina.
Palavras-chave: álcool, depressão, estudantes
de medicina, dependência química.
Abstract
Many studies investigate the issue of alcohol abuse of medical students,
who may be influenced by culture, pleasure seeking and other factors related to
social or emotional relevance. Among medical students, this high intake may occur
due to exposure to intense workload and frequent contact with disease, physical
pain and death. By observing these factors, it is assumed that, just as there is
an intimate relationship between psychiatric symptoms and disorders related to alcohol
consumption in adolescents, as well as in the general population, it may occur with
medical students, considering the abuse and/or alcohol dependence as a mechanism
to deal with the depression symptoms. Thus, this study performs a literature review
on the relationship between depression and the incidence of alcohol abuse in medical
students. In total, 13 articles were selected for full paper by being accessible
and present keywords related to the subject and relevant data to the general purpose
from their abstracts. After reading these articles, the direct relationship between
depression and alcohol abuse in medical students was seen as contradictory.
Key-words: alcohol, depression,
medical students, chemical dependency.
A relação entre o indivíduo
e as bebidas alcoólicas estabelece-se a partir de diversas formas. Uma delas abrange
o etilismo – dependência de álcool – que consiste em uma doença caracterizada pelo
consumo excessivo e descontrolado de álcool, ainda que seu comportamento leve a
alguma consequência negativa [1]. Estas repercussões podem envolver aspectos sociais,
econômicos e de saúde, as quais podem estar presentes também quando há abuso regular
de álcool, sem a caracterização de compulsão.
O binge drinking é o abuso agudo de bebidas
alcoólicas, caracterizado pelo consumo de cinco ou mais doses de álcool numa mesma
ocasião [2]. Trata-se de um hábito frequente em determinados grupos [3], porém,
não significa necessariamente que o indivíduo é etilista. Entretanto, deve-se atentar
que é comum que o abuso de substâncias seja precedido por um período de uso com
mínimos prejuízos acarretados [4], que poderia ser o caso do binge drinking. Além disso, algumas vezes,
o uso de drogas lícitas como o álcool e, geralmente com ampla aceitação social,
tem o papel de substituir o uso de drogas ilícitas antes de haver a experimentação
destas. Isto também ocorre de forma contrária, como mostra o estudo de Da Silveira
et al. [5], em que foi constatada a substituição
de drogas ilegais para as legais entre estudantes mulheres, conforme o ano de graduação
avançava.
Sintomas como sentimentos
de tristeza, vazio, ou humor irritável, acompanhados de mudanças somáticas ou degenerativas
que afetam a capacidade funcional do indivíduo estão presentes em todos os transtornos
depressivos classificados atualmente pela medicina. O transtorno depressivo maior,
também popularmente conhecido somente pelo nome de depressão, faz parte desse grupo.
Ele pode ser caracterizado por sintomas que envolvem episódios de alterações nas
funções afetivas, cognitivas e neurovegetativas, além da presença de remissão entre
os episódios [6]. Quando um indivíduo já portador de uma doença é afetado por outra,
havendo possibilidade de potencialização recíproca entre as duas, ocorre a comorbidade
[7]. A literatura revela que essa situação é estabelecida entre a depressão e o
álcool, apesar de não estarem claros os mecanismos envolvidos nesta relação [8,9].
O uso excessivo e constante
do álcool, bem como a presença de doenças psiquiátricas isoladas, ambos sem tratamento, podem ser impactantes para o estudante de medicina ao longo
de sua carreira. De acordo com a Organização Mundial de Saúde [10], ocorreram aproximadamente
3,3 milhões de mortes relacionadas ao álcool no ano de 2012, o que significa 5,9%
do total de óbitos. Isso evidencia a necessidade de uma maior discussão sobre o
assunto, com foco em prevenção e tratamento, considerando um problema de saúde pública
mundial. Além disso, a cultura e as leis existentes em determinados locais podem
influenciar a incidência do uso de substâncias químicas [11], como acontece em países
onde as propagandas publicitárias de bebidas alcoólicas e de cigarro são permitidas
e parcialmente responsáveis pelo maior número de etilistas ou tabagistas. Este fato
mostra que os artigos que buscam e discutem somente a padronização de conceitos
e não abordam estas diferenças culturais dificultam as análises e, posteriormente,
uma interpretação geral do assunto.
O abuso de álcool entre
os estudantes de medicina pode ocorrer em função da exposição à intensa carga horária
do curso e do frequente contato com doenças e mortes [11]. Foi evidenciado também
que os estudantes universitários possuem maior tendência ao abuso de bebidas alcoólicas
[12]. Salienta-se que serão profissionais que propagarão os conhecimentos em saúde
e que o uso problemático poderá interferir na habilidade de fazerem um diagnóstico
precoce, encaminhamento e tratamento de pacientes dependentes [13]. Notou-se nesses
universitários alta prevalência do binge drinking.
Esse tipo de comportamento é comum principalmente durante festas pós-exames e acredita-se
que sirva como uma maneira de obter alívio da tensão e estresse imediato causados pelas provas [3]. Esta conduta, assim como
o regular abuso de álcool, pode levar ao desenvolvimento de doenças secundárias
e, ocasionalmente, ao comprometimento do tratamento de pacientes sob seus cuidados
[3,14]. Pickard et al.
[14] mostraram que o consumo de outras
substâncias químicas que não incluíam
álcool não foi tão grande quanto este, sugerindo
que a população estaria mais consciente das más
consequências sociais e para a saúde,
o que ainda não se encontra tão nítido em
relação às bebidas alcoólicas.
Ao observar esses fatores,
presume-se que, assim como mostrado em estudos que afirmaram que há íntima relação
entre sintomas psiquiátricos e desordens relacionadas ao consumo de álcool nos adolescentes,
bem como na população em geral [15], isso pode ocorrer no grupo dos estudantes de
medicina, considerando-se o abuso e/ou dependência de álcool como um mecanismo para
lidar com os sintomas da depressão. Dessa forma, este estudo tem como objetivo realizar
uma revisão de literatura sobre a relação entre depressão e a incidência de abuso
de álcool nos estudantes de medicina.
Fonte de
dados
Uma revisão de literatura
foi realizada a partir de junho de 2015 utilizando o banco de dados do website PUBMED. Para isso, foi empregado
o seguinte conjunto de palavras-chave: alcohol
and depression and medical students. Tendo em vista que, desta forma, um vasto
número de títulos a ser analisado foi encontrado, outro conjunto de palavras-chave
foi determinado e utilizado para a realização da pesquisa, a fim de serem obtidos
títulos um pouco mais específicos: alcohol
and depression and medical students and chemical dependency.
Após a pesquisa, 52 títulos
foram obtidos, sendo selecionados apenas 22, pois correspondiam ao tema de interesse
– a relação da depressão e abuso de álcool em estudantes de medicina. A partir da
leitura dos resumos desses artigos, datados do ano de 1983 a 2015, nove foram rejeitados
pelos seguintes motivos: três deles não apresentaram acesso; um estava escrito na
língua alemã e os outros foram considerados incoerentes com os respectivos títulos,
pois, em geral, contemplavam o abuso de substâncias pelos pacientes e não pelo graduando,
como esperado. Os 13 artigos restantes foram selecionados para leitura íntegra por
serem acessíveis e, a partir de seus resumos, apresentarem dados pertinentes ao
objetivo geral e palavras-chave relacionadas ao assunto.
Os artigos analisados
corroboram com a afirmação de que o álcool é a substância psicoativa mais utilizada
pelos estudantes de medicina e diversos autores afirmam que os níveis de consumo
de álcool podem sofrer grandes variações de acordo com o momento da carreira profissional
[11,12,14].
Foi analisada principalmente a variação do
1º ao 6º ano da graduação. Para isso, houve a
utilização de diferentes questionários,
como o CAGE – iniciais de “cut down”, “annoyed”, “guilty”,
“eye-opener” – para identificar problemas relacionados ao uso de álcool, o BDI –
Beck Depression Inventory, o HAD – Hospital Anxiety and Depression Scale e a
Escala Zung de Depressão.
Vários estudos utilizaram
o questionário CAGE em algum momento da pesquisa e, em dois deles, foram estabelecidos
os mesmos critérios de perguntas – duas ou mais respostas positivas eram suficientes
para a determinação de risco de uso abusivo de álcool. Ao se comparar alunos calouros
com veteranos, a pontuação neste questionário diminuiu em ambos os estudos [11,12].
Pode haver influência nos resultados obtidos com relação à metodologia utilizada
e à descrição de quando o comportamento de binge
drinking aumentou [16] ou diminuiu [3] de acordo com o avanço nos períodos do
curso de medicina. Resultados distintos também foram encontrados em relação à prevalência
de sintomatologia depressiva em pesquisas que utilizaram metodologias diferentes.
Certos
aspectos como a
cultura e as leis locais também podem explicar as significantes
divergências de
resultados encontrados em diversos artigos de diferentes países.
Outro fator que
pode influenciar é o costume religioso. De acordo com um estudo
da Turquia, após
a análise de dados da pesquisa realizada através do
questionário CAGE, notou-se
que o item ”sentimento de culpa após beber”
alcançou alto índice entre os alunos
participantes, relacionado pelo autor às influências de
tradições Islâmicas na população
deste país [11].
Diversos estudiosos observam que há alta incidência
de consumo de álcool entre os estudantes de medicina, entretanto, muitos não obtêm
informações suficientes para afirmar se os níveis de depressão e de abuso de álcool
estão correlacionados, não atingindo uma conclusão clara. Por outro lado, alguns
estudos afirmam que não há relação entre depressão e o alto consumo de álcool nesse
grupo [11,16]. Shah et al. [17] mostram resultados que sugerem
a depressão como um fator que leva um estudante a desenvolver um comportamento de
risco para o abuso do álcool. Entretanto, é alegado que são necessários dados longitudinais
para avaliação do mecanismo de associação entre esses fatores e comportamentos nesse
grupo. Quanto à ansiedade, que é normalmente analisada junto à depressão, nota-se
que, apesar de serem encontrados altos índices entre os alunos [14,18], há contradição
quanto à afirmação de que possui relação com o consumo de bebidas alcoólicas.
Maddux et al. [4] relacionaram atributos de personalidade,
como o transtorno depressivo, ao abuso de substâncias psicoativas entre estes estudantes.
Entretanto, os autores declaram que havia limitações no estudo com relação ao baixo
número de estudantes que participaram da pesquisa e às respostas inadequadas, assim
como ocorreu em outros artigos que foram analisados. Trostler et al. [3] também verificaram uma associação
entre o binge drinking e o auto diagnóstico relatado de depressão.
O principal obstáculo
é analisar se o estudante realmente possui quadro depressivo ou de alcoolismo via
ferramentas disponíveis, que nem sempre são suficientes para estabelecer um diagnóstico
criterioso dos indivíduos estudados. Por isso, são recorrentes as análises que abrangem
o abuso de álcool e não a presença do etilismo. Portanto, em geral, os artigos coletaram
dados nos questionários como o nível de consumo de álcool nos últimos dias e a presença
de sintomatologia depressiva para ser possível analisar estas variáveis [17]. Apesar
disso, alguns estudos utilizaram questionários auto administrados,
que mostravam se o estudante já consumiu álcool em algum momento da vida ou no último
mês sem pelo menos perguntar-lhes a frequência, o que dificulta a análise de riscos.
Quanto à depressão, autores afirmam que pode haver confusão entre sintomas de transtorno
depressivo maior e os sentimentos advindos das consequências da dependência ao álcool,
sendo necessário, nos casos de indivíduos adictos, aguardar a desintoxicação e o
fim da fase de abstinência para ser possível diagnosticar aquela doença [19], o
que não se enquadraria em determinados estudos que utilizam como métodos questionários
anônimos.
O ambiente no qual o paciente
vive também pode ser um fator prognóstico para o desenvolvimento da depressão e/ou
abuso do álcool. Segundo o DSM-5™ [6], experiências ocorridas durante a infância
e eventos passados estressantes são potenciais fatores de risco. Esse último, entretanto,
quando recente, ou seja, ocorrido próximo ao período de início dos episódios sintomáticos,
não parece ser útil para o prognóstico ou tratamento adequado, sendo mais um empecilho
para a condução destas pesquisas.
A literatura relata diferentes
tipos de transtornos depressivos. Nem todos os autores levam isso em conta e especificam
qual o tipo de depressão analisada, podendo ser uma limitação ao se realizar comparações
entre esses artigos, pois não está claro se todos abordam o transtorno depressivo
maior especificamente. Há outras limitações que podem ser notadas nos estudos analisados,
como o baixo retorno de questionários completos para os autores dos artigos, contribuindo
para uma amostra pequena nas pesquisas. Quando o questionário era anônimo, existia
a dificuldade em receber as respostas de volta que, muitas vezes, deveriam ser enviadas
pelo correio, já que nem sempre o método online
era utilizado. Outra dificuldade era a de que o aluno preenchia os questionários
na sala de aula para serem recolhidos no mesmo dia. Além disso, não era sempre possível
realizar um acompanhamento do mesmo indivíduo ao longo do tempo graças à falta de
identificação. No caso dos questionários não anônimos, havia dúvidas sobre a veracidade
das respostas, pois muitos alunos possuíam medo de serem futuramente expostos e
de sofrerem consequências.
Em nossas pesquisas, houve
problemas com alguns títulos com duplo sentido, que nos levaram a crer que o artigo
abrangia o estudante de medicina ou o médico com problemas relacionados ao álcool,
porém tratava-se de estudantes que cuidavam de pacientes alcoolistas. Além disso,
os artigos apresentam falta de padronização de quanto equivaleria um drink. Muitos deles citam a quantidade de
drinks, porém não especificam o quanto
há de álcool em cada um, o que pode variar.
Os
dados da literatura
são contraditórios quanto à relação
entre depressão e abuso de álcool nos estudantes
de medicina. Primeiramente, alguns estudos apontam para uma
possível associação,
enquanto outros afirmam que isso não ocorre. Portanto, é
difícil estabelecer uma
causa específica para o consumo de álcool entre esses
universitários, seja devido
às pressões, excessiva atividade de trabalho, intensa
carga horária, prolongamento
da dependência financeira, privações familiares e
sociais. Em segundo lugar, não
foram encontrados artigos que abrangem se o estudante teve o
início de depressão
antes ou após o início da graduação, e
não existem afirmações que esclareçam se
esta poderia ser causa de possíveis abusos do álcool,
principalmente nos últimos
anos do curso médico.
Há, portanto, a necessidade
de melhor compreensão dos diferentes fatores envolvidos entre a depressão e o uso
do álcool dos futuros médicos. Porém, a detecção precoce favorece a promoção de
medidas de conscientização e de prevenção de danos decorridos do uso abusivo de
bebidas alcoólicas quanto aos aspectos físicos, emocionais e de comportamentos desses
universitários.