RELATO DE CASO

Picamalácia infantil: um estudo de caso

Child´s pica; a case study

 

Ísis Sousa do Nascimento*, Mônica de Almeida Lima Alves, M.Sc.**

 

*Graduanda em Nutrição pela Faculdade Internacional da Paraíba, **Docente do curso de Graduação em Nutrição da Faculdade Internacional da Paraíba, Especialista em Nutrição Clínica (Gama Filho) e Mestre em Ciências da Nutrição (UFPB)

 

Recebido 2 de maio de 2017; aceto 15 de novembro de 2018.

Correspondência: Ísis Sousa do Nascimento: isissousaster@gmail.com; Mônica de Almeida Lima Alves: monicadealima@yahoo.com.br

 

Resumo

Os transtornos alimentares são doenças que interferem no comportamento e consumo alimentar, podendo causar distúrbios relacionados ao excesso ou à carência nutricional. Um transtorno pouco comentado é a síndrome de pica ou picamalácia, que é uma séria condição psiquiátrica, com consequências potencialmente fatais. Esta síndrome é rara nos seres humanos, muito difícil de ser trabalhada devido o apetite da pessoa portadora ser voltado ao consumo de substâncias estranhas que não são alimentos. O objetivo desta pesquisa foi descrever as alterações de ingestão e os riscos associados de uma criança com picamalácia. Trata-se de um estudo de caso, realizado com uma criança de 8 anos, do gênero feminino, diagnosticada com picamalácia. A responsável descreveu todas as substâncias “estranhas” ingeridas por sua filha e a história da doença, incluindo seus medos e angústias e o tratamento atual. A mãe relatou que desde 1 ano de idade identificou a ingestão de “coisas” estranhas pela filha, como percevejo, desodorante, condicionador, medicamentos, soro fisiológico e cola de isopor. A mesma informa que nota um desejo exorbitante, pela filha, de ingerir estas substâncias, o que causa bastante angústia, já que pode haver intoxicação grave, sendo o tratamento atual acompanhamento psicológico.

Palavras-chave: picamalácia, criança, riscos.

 

Abstract

Eating disorders are diseases that interfere with eating behavior and intake, and may cause disorders related to excess or nutritional deficiency. An uncommon disorder is pica syndrome, which is a serious psychiatric condition with potentially fatal consequences. This syndrome is rare in humans, very difficult to treat because the appetite of the carrier is directed to the consumption of strange substances that are not food. The aim of this study was to describe the ingestion changes and the associated risks of a child with itching. It is a case study, carried out with an 8-year-old female, diagnosed with pica. Her mother described all the "strange" substances ingested by her daughter and the history of the illness, including her fears and anxiety and her current treatment. The mother reported that since 1 year of age she has identified the ingestion of strange "things" by the daughter, such as bed bug, deodorant, conditioner, medicines, saline and styrofoam glue. The same informs that it notices an exorbitant desire, by the daughter, to ingest these substances, which causes a lot of anxiety, since there can be serious intoxication, being the current treatment psychological follow-up.

Key-words: psychosis, child, risks.

 

Introdução

 

Sabemos que a alimentação é algo primordial que se inicia na infância e permanece ao longo das nossas vidas, tanto para o desenvolvimento quanto para manutenção de todos os sistemas corporais. Por isso alguns profissionais de saúde têm se preocupado com alguns transtornos alimentares que tem cercado a nossa população, como: anorexia, bulimia, transtorno de compulsão alimentar, obesidade, vigorexia, síndrome de gourmet, transtorno alimentar noturno e síndrome de pica.

Os transtornos alimentares são doenças que afetam particularmente adolescentes e adultos jovens do sexo feminino, levando a marcantes prejuízos psicológicos, sociais e aumento de morbidade e mortalidade [1].

Esses transtornos possuem uma etiologia multifatorial composta de predisposições genéticas, socioculturais e vulnerabilidades biológicas e psicológicas. Entre os fatores predisponentes, destacam-se a história de transtorno alimentar e/ou transtorno do humor na família, os padrões de interação presentes no ambiente familiar, o contexto sociocultural, caracterizado pela extrema valorização do corpo magro, disfunções no metabolismo das monoaminas centrais e traços de personalidade. A dieta é o comportamento precursor que geralmente antecede a instalação de um transtorno alimentar [2].

O grau e os tipos de comprometimento do padrão alimentar normal variam muito. Alguns comportamentos inadequados, como a ingestão de ‘coisas estranhas’ ou de refeições ao longo do dia e realização de dietas não balanceadas, podem aparecer isoladamente ou fazendo parte de um transtorno psiquiátrico [3].

Um dos transtornos alimentares (TA) mais comum entre gestantes e crianças, que vem crescendo consideravelmente, é a síndrome de pica ou picamalácia, que é uma séria condição psiquiátrica, com consequências potencialmente fatais.

A picamalácia é um transtorno que vem sendo estudado há décadas e documentado na história há séculos, havendo relatos desde a civilização greco-romana. Acredita-se que Hipócrates foi o primeiro autor a descrever esse transtorno [4]. No ano 40 a.C. já havia sido documentado o uso de argila para curar enfermidades, e havia registros de vários casos de desejo por substâncias não comestíveis.

Na literatura nacional e internacional, vários termos são utilizados para descrever a desordem alimentar conhecida como pica, caracterizada pela ingestão persistente de substâncias inadequadas com pequeno ou nenhum valor nutritivo, ou de substâncias comestíveis, mas não na sua forma habitual. Além desse, outros termos são propostos, tais como: picamalácia, picacia, picacismo, malácia, geomania, pseudorexia, entre outros – todos com diferentes graus de descontrole do apetite [5,6]. Outra definição para pica refere-se ao gosto por alimentos esdrúxulos, condimentos raros ou substâncias estranhas [7].

A síndrome de pica é um dos transtornos alimentares mais raros nos seres humanos, porém muito difícil de lhe dar com ele, devido o apetite da pessoa atingida ser voltado ao consumo de coisas “estranhas” que não são alimentos. Para que essa síndrome seja considerada pica é preciso que ela persista por no mínimo três meses [8].

É importante considerar os riscos que o portador desta síndrome está exposto pelo fato de ingerir substância que podem causar grave intoxicação ou envenenamento.

Com base nos dados acima, o objetivo geral desta pesquisa foi descrever as alterações de ingestão e os riscos associados de uma criança portadora de picamalácia.

 

Material e métodos

 

Trata-se de um estudo de caso, descritivo e qualitativo, realizado com uma criança diagnosticada com picamalácia, com 8 anos de idade, do gênero feminino.

A responsável pela criança descreveu a história da doença, informando todas as alterações alimentares consideradas estranhas, as idades específicas em que se observou a ingestão de substâncias não alimentares, as alterações clínicas, complicações e tratamentos realizados.

Todos os dados coletados foram descritos em forma de tabela e texto para discussão.

 

Resultados

 

Tabela I - Descrição das alterações de ingestão observadas em uma criança com picamalácia, reação dos pais, consequências e profissionais envolvidos.

 

 

Discussão

 

Muitos conceitos de picamalácia referem-se ao gosto por alimentos esdrúxulos, condimentos raros ou substâncias estranhas [7]. Dentre as perversões do apetite mais comuns encontram-se a pagofagia (ingestão de gelo), a geofagia (ingestão de terra ou barro), a amilofagia (ingestão de goma, principalmente a de lavanderia), o consumo de miscelâneas (combinações atípicas) e frutas verdes. No entanto, outras substâncias não alimentares também são referidas, como palitos de fósforo queimados, cabelo, pedra e cascalho, carvão, fuligem, cinzas, comprimidos de antiácidos, leite de magnésia, borra de café, bolinhas de naftalina, pedaços de câmara de ar, plástico, tinta, sabonete, giz, toalha de papel e, até mesmo, sujeira [9,10].

A prática da pica não está limitada a uma área geográfica, raça, crença religiosa, cultura, sexo ou idade; contudo, é comumente relatada em indivíduos com doenças mentais, crianças, especialmente mulheres na gestação, entre outros [9,10]. No entanto, a amilofagia, a geofagia e a ingestão de itens relacionados são mais frequentes entre gestantes socioeconomicamente menos favorecidas [6], e parecem estar mais associadas à inadequação do estado nutricional antropométrico.

Segundo relato materno, a primeira “coisa estranha” ingerida pela criança foram percevejos, entre 1 e 2 anos de idade. A mãe informou que observava a vontade que a criança tinha de inserir o inseto na boca, sempre que encontrava um, porém, achava que era “coisa de criança” e não se incomodou com aquilo, passou apenas a ter mais atenção na criança. Os responsáveis relataram sensação de medo e angústia pelo fato de a criança ter se intoxicado devido a ingestão do inseto.

Entre 3 e 4 anos de idade, a criança passou a demonstrar um interesse muito grande em consumir gelo, fato relatado na literatura, além de condicionador de cabelos e frutas muito azedas. Apesar de estranho, os pais consideraram o fato normal e passaram a observar de forma mais atenta a criança, principalmente pela ingestão de condicionador, substância química que pode causar danos mais sérios à saúde.

A partir dos 5 anos de idade, a criança despertou um desejo impulsivo em consumir mais substâncias estranhas, como: desodorante aerossol, medicamentos, soro fisiológico, causando uma inquietação dos pais e muitos questionamentos. A mãe relatou que não fazia ideia do que seria e iniciou um tratamento contra verminoses.

A etiologia da pica é pouco compreendida, mas complexa, o que dificulta o diagnóstico, além de ser uma condição clínica pouco comentada e investigada pelos profissionais de saúde. Fatores culturais, nutricionais, ambientais, fisiológicos (alívio de sintomatologia digestiva) e causas psicológicas têm sido postulados [11]. Dentre os fatores culturais e ambientais associados, podem ser citados os tabus e superstições, história familiar e condição socioeconômica [2,6] e, entre os emocionais, há relação com alterações hormonais e diminuição do estresse [9].

A partir dos 7 anos de idade, quando a criança acrescentou a ingestão de palito de fósforo queimado, cola de isopor, batata crua, coentro com colorau e sal, foi que a mãe relatou buscar ajuda profissional, porém, não conseguiu diagnóstico. Até que um dia, em uma palestra com uma psicóloga, a mãe da criança ouviu falar da picamalácia e associou todas as situações clínicas com as características de sua filha. A responsável, a partir de então, obteve o diagnóstico da menor e iniciou tratamento e acompanhamento psicológico.

Os profissionais da saúde que atendem o público infantil devem reconhecer que a picamalácia é uma condição possível de ser encontrada e pode estar associada a um desfecho desfavorável. Consequentemente, é necessário investigar todas as crianças sobre este comportamento, a partir de conversa com os familiares, e aconselhá-las sobre seus efeitos. Portanto, deve-se não somente realizar a avaliação na prática clínica, mas, também, determinar sua frequência, documentar os casos e publicá-los [12]. Dessa forma, o aconselhamento, sobretudo o nutricional, terá a função de auxiliar o profissional a encontrar medidas que possam minimizar as dificuldades diante desse problema.

Por ser muito rara em criança, existem mais estudos sobre picamalácia em gestantes. Verificou-se que, dentre os motivos alegados para a prática da pica, por gestantes, foram o alívio da ansiedade ou estresse e, também, o alívio de sintomatologia digestiva. Achados semelhantes são descritos com gestantes americanas, que acreditavam que a ingestão de substâncias como argila, maisena e bicarbonato de sódio aliviava a sintomatologia digestiva [9]. De fato, a picamalácia pode ser um comportamento de adaptação, de aceitação, de representação de uma necessidade fisiológica ou de um desejo por uma substância não nutritiva que o indivíduo apresenta [13].

Na atualidade, evidências sugerem que a depleção das reservas de ferro é a origem da picamalácia, e esse transtorno é reconhecido como um dos sinais característicos da anemia ferropriva, tendo sido demonstrado que a suplementação com ferro diminui o hábito de picamalácia [9,10]. Outra teoria sugere que a deficiência de nutrientes como ferro e zinco seria a responsável pelas alterações do funcionamento das enzimas reguladoras do apetite [9].

Por outro lado, os investigadores que apontam a teoria de que a picamalácia seja uma causa de anemia, baseiam-se no fato de que a ingestão de substâncias como terra ou argila pode inibir a absorção de ferro dietético ao formar compostos insolúveis com este micronutriente [9]. Essas substâncias também poderiam causar saciedade, diminuindo o apetite e ocasionando uma diminuição dos alimentos nutritivos [14].

Quando questionada sobre o estado nutricional da criança participante da pesquisa atual, a mãe informou que realiza exames bioquímicos anuais na menor e que não foi identificada anemia.

Em um estudo realizado na Argentina com 109 mulheres, dentre elas 42 gestantes com pica, 37,8% apresentaram deficiência de zinco, um terço estavam com anemia e 35% demonstraram déficit de zinco associado a deficiência de ferro [15]. Achados semelhantes foram encontrados na China, que apresentou valores baixos de zinco em crianças com pica quando comparadas ao grupo controle e demonstrou que a suplementação do mineral contribuiu para o desaparecimento da pratica [16].

A orientação nutricional requer cuidados individualizados a fim de promover uma alimentação equilibrada em qualidade e quantidade suficientes para garantir o aporte de nutrientes necessário para o crescimento e desenvolvimento infantil [17]. A educação nutricional deve ser realizada durante todo o acompanhamento clínico e baseada na anamnese, inquéritos alimentares, curvas de peso e desenvolvimento e exames laboratoriais para detecção de déficits nutricionais com consequente correção na dieta, além de assegurar a suplementação preventiva de determinados nutrientes, destacando-se o ferro e ácido fólico [14]. Nos casos onde for identificada a pratica da pica, as famílias devem ser esclarecidas sobre os riscos associados e aconselhadas a evitarem o contato com a substância desejada pelas crianças e substituírem-na por seus alimentos preferidos [16].

 

Conclusão

 

Foi observada na criança portadora de pica a ingestão de substâncias não alimentares como condicionador, medicamentos, palito de fósforo queimado, desodorante e cola de isopor, produtos considerados de risco devido a sua composição química, podendo causar intoxicação e até morte por envenenamento. Alguns alimentos também foram observados, como batata inglesa crua, coentro com condimentos, gelo e frutas muito azedas.

Identificou-se uma dificuldade de diagnóstico, sendo necessária discussão desta síndrome entre os profissionais de saúde e a população. O tratamento deve ser com acompanhamento psicológico, pediátrico e nutricional.

A síndrome de pica é pouco relatada no público infantil, sendo necessário mais estudos neste grupo abordando diagnóstico, complicações e tratamentos.

 

Referências

 

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