REVISÃO
Rabdomiólise
e programas de condicionamento extremo
Rhabdomyolysis and extreme conditioning
programs
Gabriel Veloso
Cunha*, Jonato Prestes**, Fabrício Azevedo Voltarelli***, Ramires Alsamir Tibana***
*Graduando
em Medicina pelo Programa de Graduação em Medicina da UCB,
Brasília/DF,**Departamento de Educação Física da UCB, Brasília/DF,
***Departamento de Educação Física da UFMT, Cuiabá/MT
Recebido em 14 de
agosto de 2017; aceito em 28 de agosto de 2017.
Endereço
para correspondência:
Gabriel Veloso Cunha, Universidade Católica de Brasília, QS 7
lote 01, s/n Taguatinga Sul, 71966-700 Brasília DF, E-mail: gabrielvelosoc@gmail.com;
Jonato Prestes: jonatop@gmail.com; Fabrício Azevedo Voltarelli:
faunesp8@yahoo.com.br; Ramires Alsamir Tibana: ramirestibana@gmail.com
Resumo
A
rabdomiólise é uma
síndrome potencialmente fatal associada a processos que culminem
em lesão
muscular, tais como intoxicações, doenças
metabólicas e exercício extenuante.
Apesar de ser amplamente descrita em modalidades como o treinamento de
força e
endurance, são escassos os estudos relativos à sua
ocorrência nos programas de condicionamento extremo. Neste artigo
objetiva-se descrever a sua fisiopatologia e
fatores de risco, bem como analisar os relatos de caso pertinentes
encontrados
na literatura, a fim de elucidar os aspectos mais associados à
ocorrência de
rabdomiólise nessas modalidades. Foram realizadas buscas sem
limites temporais
nas bases de dados Pubmed, Scopus, Web of Science e Scielo, sendo
selecionados,
após aplicação dos critérios de
inclusão e exclusão, 30 artigos para análise
crítica integral. Foi encontrado que os principais fatores
associados à
ocorrência da síndrome nos programas de condicionamento
extremo são condizentes
com aqueles descritos nas demais modalidades esportivas.
Atenção deve ser dada
ao fato que o quadro tem sido descrito não somente em
praticantes iniciantes,
mas também com relativa frequência em atletas experientes
com a atividade.
Reitera-se a imprescindibilidade do acompanhamento profissional
adequado e
conscientização acerca dos fatores de risco e formas de
prevenção.
Palavras-chave: rabdomiólise,
exercício, aptidão física, músculo esquelético, mialgia.
Abstract
Rhabdomyolysis is a potentially fatal syndrome associated with processes
that culminate in muscle injury, such as intoxication, metabolic diseases, and
strenuous exercise. Although widely described in modalities such as strength
and endurance training, there are few studies regarding its occurrence in
extreme conditioning programs. This article aims to describe its
physiopathology and risk factors, as well as to analyze the pertinent case
reports found in the literature, in order to elucidate the most associated
aspects with the occurrence of rhabdomyolysis in these modalities. Searches
were performed without any temporal limits at Pubmed,
Scopus, Web of Science and Scielo databases, being
selected after application of the inclusion and exclusion criteria, 30 articles
for critical analysis. It was found that the main factors associated with the
occurrence of the syndrome in extreme conditioning programs are consistent with
those described in other sports. Attention should be given to the fact that the
condition has been described not only in beginner practitioners, but also
relatively often in experienced athletes. The need for adequate professional
monitoring and awareness of risk factors and forms of prevention is reinforced.
Key-words:
rhabdomyolysis, exercise, physical fitness, skeletal muscle, myalgia.
A rabdomiólise é
definida como o conjunto de sintomas clínicos e achados laboratoriais
decorrentes do extravasamento de conteúdos intracelulares de miócitos para a
corrente sanguínea, em especial eletrólitos, mioglobina e proteínas
sarcoplasmáticas [1]. Geralmente se manifesta com paresia de membros, mialgia,
edema e mioglobinúria [2]. A ocorrência de insuficiência renal aguda indica um
pior prognóstico. Os mecanismos envolvidos na patogênese são principalmente:
agressão direta às fibras musculares (ex. traumas e intoxicações) e depleção de
adenosina trifosfato, esta que propicia desequilíbrio iônico intracelular e o
consequente desencadeamento de mecanismos citotóxicos [3,4].
Pode ocorrer após
atividades físicas vigorosas, tais como percursos com obstáculos, triathlons,
treinamentos militares e sessões de musculação [5]. É uma resposta relativamente
comum a exercícios extenuantes e prolongados, sendo mais relatada em
determinadas modalidades de corrida do que no ciclismo e triátlon.
Rabdomiólise, hiponatremia e insuficiência renal aguda são as principais
complicações em corredores de ultra-endurance [6].
A síndrome é relatada
em atletas e também na população em geral, tendo uma prevalência maior em
homens [7]. As
manifestações clínicas mais características são mialgia e a mioglobinúria,
associadas ou não a complicações como insuficiência renal aguda, hepatopatia,
síndrome compartimental e hipercalemia [6,7]. A insuficiência renal aguda
ocorre em aproximadamente 10 a 30% dos casos, uma condição clinicamente
importante devido à alta morbimortalidade associada [7]. Adicionalmente, estão
associados à sua ocorrência também dietas hipoproteicas, uso
de estatinas, álcool e anfetaminas. Distúrbios genéticos de base devem ser
considerados em quadros de repetição associados ao histórico familiar
predisponente. Condições relativamente comuns, como a presença de traço
falciforme, possuem associação com uma maior prevalência da síndrome [8]. Seu
diagnóstico é fundamental para prevenir episódios futuros, embora seja
desafiador devido à heterogeneidade desses distúrbios. O mais comum é que haja
a interação de fatores genéticos e ambientais [2,9].
A detecção de
componentes derivados da musculatura localizados no plasma é usada para o
diagnóstico de rabdomiólise. Índices de creatinoquinase (CK) cinco vezes
maiores que o normal geralmente confirmam o
diagnóstico, embora um aumento excedendo em até dez vezes o limite seja
relativamente comum em atletas após atividade física vigorosa [10].
Embora haja um
importante déficit de levantamentos epidemiológicos acerca da síndrome, aparentemente
sua prevalência global é subestimada. Calcula-se que seja responsável por 7% a
10% dos casos insuficiência renal aguda nos EUA. A mortalidade decorrente da
rabdomiólise é dependente da causa, estado prévio de saúde e acesso a
tratamento, justificando sua ampla oscilação entre 2% a 46%. A maior parte dos
pacientes recupera a função renal em poucos meses, embora alterações possam
permanecer, aumentando o risco posterior de nefropatias [3].
Paralelamente, o CrossFit® versa entre os principais programas de
condicionamento extremo em termos de valores absolutos e crescimento no número
de adeptos. Diz respeito a uma modalidade de treinamento que visa otimizar as 10 valências físicas por meio de exercícios
funcionais, de alta intensidade e constantemente variados. A despeito da alta
popularidade da modalidade, são escassas as publicações pertinentes [11].
Neste artigo
objetiva-se realizar uma revisão de literatura acerca da fisiopatologia,
características clínicas e fatores de risco da rabdomiólise induzida por
exercício. Os dados foram direcionados para a ocorrência da síndrome em
programas de condicionamento extremo, em especial o CrossFit®.
Foram realizadas
buscas nas bases de dados PubMed, Scopus, Web of
Science e Scielo com os descritores “(rhabdomyolysis) AND extreme
conditioning”, “(rhabdomyolysis) AND cross-training” e “(rhabdomyolysis) AND
CrossFit”. Não foram estabelecidos limites temporais, sendo excluídos os
estudos relacionados a modalidades não-pertinentes ou
que abordassem temática alheia aos objetivos desta revisão. Para a obtenção de
uma base teórica consolidada a fim de realizar uma discussão completa sobre o
tema, foi realizada uma busca adicional na base PubMed
com associação entre as palavras-chave “Rhabdomyolysis”, “Exercise”, “Physical
activity” e “Exertional Rhabdomyolysis”, sendo selecionados artigos com datação
menor que 10 anos, conforme descrito na Figura 1.
Figura
1 - Algoritmo de busca e seleção de artigos para
esta revisão de literatura.
Exercício
físico e rabdomiólise
A rabdomiólise pode
ser induzida por exercícios prolongados e de alta intensidade ou por contrações
súbitas e excessivas da musculatura esquelética, com típico aparecimento das
manifestações clínicas proeminentes entre 24 e 48h após a atividade [12]. Sua
ocorrência é dependente também do nível de experiência e preparo dos
praticantes [7]. A incidência de insuficiência renal aguda aparentemente é
menor na rabdomiólise induzida por exercício, quando comparada com outras
causas [13]. Índices aumentados de CK indicaram sua ocorrência em maratonistas
homens de meia idade praticamente assintomáticos, salvo pela mialgia que os
próprios atribuíam à atividade extenuante, demonstrando que o quadro é
subdiagnosticado [14].
A desidratação pode
ser um fator-chave no desencadeamento da síndrome, mesmo em praticantes
previamente hígidos e bem condicionados [15]. Deve ser priorizada a ingesta de
fluidos isotônicos uma vez que líquidos hipotônicos podem levar a graus
variados de hiponatremia. Índices reduzidos de sódio, por mecanismos ainda não
bem elucidados, são predisponentes a quadros de rabdomiólise. Chlíbková et al. [6] encontraram uma maior
prevalência de rabdomiólise associada ao exercício físico em ciclistas e
especialmente corredores com hiponatremia do que em atletas com sódio sérico
normal. A patogênese da rabdomiólise possui como base o aumento dos índices de
cálcio ionizado livre no citoplasma [14]. Síndrome compartimental e
coagulopatia intravascular disseminada podem ocorrer de forma concomitante, mas
as complicações mais comumente associadas são os distúrbios hidroeletrolíticos.
A hipercalemia pode ser importante a ponto de levar a arritmias cardíacas,
hiperfosfatemia, acidose metabólica e oscilações no cálcio sérico e, dependendo
da magnitude dessas complicações, a hemodiálise deve ser indicada. Quando
houver ocorrência de síndrome compartimental, é fundamental o acompanhamento da
pressão intracompartimental para a realização precoce de fasciotomia, quando
necessária [16].
O mecanismo
fisiopatológico mais aceito, conforme ilustrado na Figura 2, é que o déficit ou
até mesmo depleção de trifosfato de adenosina devido ao exercício extenuante
induzem uma disfunção da Na-K-ATPase, prejudicando a redistribuição do balanço
iônico que ocorre fisiologicamente durante o exercício. O aumento da
concentração de sódio nos miócitos faz com que o trocador Na-Ca trabalhe para
reverter esse estado, de forma a acumular cálcio no meio intracelular. Altas
concentrações do íon nas fibras musculares estão associadas a eventos
citotóxicos como: ativação de proteases e fosfolipases (moléculas relacionadas
à degradação da membrana plasmática), maiores índices de cálcio mitocondrial e
sarcoplasmático (induzindo formação exacerbada de espécies reativas de
oxigênio) e estimulação de sinalizadores de apoptose [1,7]. O cálcio está entre
os principais íons envolvidos na manutenção da homeostase da musculatura
esquelética [17].
Figura
2 - Mecanismo que justifica a ocorrência de
rabdomiólise associada a esforços físicos extenuantes, na ausência de traumas
ou uso de substâncias miotóxicas.
O déficit ou depleção
de trifosfato de adenosina (ATP) induz uma hipofunção da Na-K-ATPase de forma a
prejudicar o balanço iônico intracelular, havendo retenção de sódio (Na) no
miócito. O trocador Na-Ca passa a trabalhar para reverter esse desequilíbrio,
trocando sódio por cálcio (Ca), de forma que este se acumula no interior da
fibra muscular. Maiores concentrações do íon induzem uma série de mecanismos
citotóxicos, entre eles: 1) ativação e proteases e fosfolipases, fenômeno
relacionado à degradação da membrana plasmática; 2) maior concentração
mitocondrial de Ca, devido ao gradiente entre a mitocôndria e o sarcoplasma,
que está associado a uma formação exacerbada de espécies reativas de oxigênio,
que danificam moléculas como lipídios, proteínas e ácidos nucleicos; e 3)
estimulação e amplificação de sinais de apoptose.
Rabdomiólise
e crossfit®
Os programas de
condicionamento extremo têm como principal representante, em termo de
popularidade atual, o CrossFit®. A modalidade envolve
protocolos com alto volume, alta intensidade, pequenos períodos de descanso
entre os movimentos, e exercícios predominantemente multiarticulares, sendo
eficaz na redução dos índices de gordura corporal e aumento da aptidão aeróbica
[18,19]. Um estudo transversal realizado no Brasil com 622 questionários
demonstrou que o principal motivo de busca pela modalidade foi a melhora da capacidade física (72.4%), somente 34.6%
referiram a melhora estética como o atrativo determinante. O mesmo estudo
relatou que 31% dos entrevistados referiram histórico de lesões associados ao CrossFit® [20].
Apesar de os efeitos
metabólicos dos programas de condicionamento extremo serem
pouco elucidados, os estudos pertinentes publicados convergem ao indicar que é
necessário um planejamento e acompanhamento adequado a fim de se evitar
consequências deletérias. Tibana et al. [21]
demonstraram que dois dias de treinamento consecutivos de CrossFit® são
suficientes para induzir importantes respostas das citocinas IL-6, IL-10 e Osteoprotegerina,
reiterando a necessidade de descanso adequado pelos praticantes. De forma
semelhante, Heavens et al. [22] mostraram que protocolos de
alta intensidade com pequenos intervalos de descanso aumentaram os níveis
séricos de citocinas e de CK – um marcador de lesão muscular utilizado no
diagnóstico da rabdomiólise.
A propriocepção
equivocada da exaustão muscular durante o exercício é um mecanismo intimamente
associado à ocorrência de lesões musculoesqueléticas. Pearcey et al. [4] relataram a ocorrência de rabdomiólise em um
atleta que, após três meses sem treinamento, retornou à prática esportiva de
alta intensidade de maneira súbita e intensa, de forma que a sua noção
subjetiva da mialgia estava prejudicada devido, segundo os autores, à sua motivação
intensa e ao uso de estimulantes pré-treino.
Embora nos estudos
retrospectivos supracitados não tenha sido relatada a ocorrência de
rabdomiólise nos grupos estudados, descrições são encontradas na literatura –
as quais foram listadas na Tabela I.
Tabela
I - Relatos da ocorrência de rabdomiólise no CrossFit®.
Meyer et al. [23] reiteram a gravidade de um
quadro de rabdomiólise e relatam sua ocorrência em uma mulher previamente
hígida com 31 anos de idade. Apesar de ser praticante de exercícios diversos
regularmente 4 vezes por semana, apresentou a síndrome
após o primeiro treinamento de CrossFit®. Os autores discutem ainda que a
mioglobinúria e mialgia não são achados obrigatórios no quadro, somente 50% dos
casos apresentam a característica dor muscular exacerbada – razão pela qual o
principal critério diagnóstico se baseia na quantificação laboratorial de CK.
Adicionalmente, em um
estudo com maior número de casos, Lozowska et al. [5] relataram seis eventos de rabdomiólise associada à prática
de CrossFit®. Pacientes previamente hígidos, alguns deles com considerável
experiência com a modalidade, sem histórico familiar predisponente, que
apresentaram manifestações como mialgia exacerbada após as primeiras 24 horas
do treinamento, especialmente nas regiões musculares demandadas mais
vigorosamente durante o exercício. Metade deles possuíam
boa aptidão física antes do ocorrido, sendo praticantes da modalidade de meses
a anos. Deve ser notado que o início das manifestações clínicas
caracteristicamente não ocorre imediatamente após a realização do esforço físico,
como foi relatado por Larsen et al. [25] em que
os sinais e sintomas surgiram somente três dias após o treinamento que deu
origem ao quadro.
A síndrome
compartimental é um evento associado a exercícios extenuantes, que pode compor
o quadro de rabdomiólise. Aynardi et al. [24]
relataram a ocorrência concomitante de rabdomiólise e síndrome compartimental
em uma mulher de 43 anos, aproximadamente 72 horas após sessão intensa de
treinamento até a falha subjetiva. Se tratava de uma
paciente com índice de massa corporal adequados e que relatava prática regular
– 3 a 5 vezes por semana – de treinamento de força há pelo menos dez anos. Os
índices aumentados de CPK foram associados ao diagnóstico de rabdomiólise. Foi
necessária intervenção médica com infusão volumétrica agressiva e fasciotomia
bilateral em membros superiores, havendo decréscimo progressivo da dor e
normalização da bioquímica sérica em 72 horas após a cirurgia.
A rabdomiólise está
associada a um quadro clínico potencialmente fatal que tem a prática de
diversas modalidades de atividades físicas por indivíduos despreparados ou não-supervisionados como um importante fator causal, versam
entre as principais: treinamento de força de alta e baixa intensidade,
endurance, treinamento militar, CrossFit®, spinning e treinamento com oclusão
vascular. Embora seja recorrente na prática clínica é pouco discutida nos meios
esportivos como academias e boxes. Torna-se evidente a imprescindibilidade da
conscientização não somente dos profissionais, mas também dos praticantes sobre
a prevenção da síndrome e dos seus riscos associados.