REVISÃO

Diabetes tipo III: mito ou realidade?

Diabetes type III: myth or reality?

 

Sidney Souza de Oliveira, Ft.*, Candice Rocha Seixas*, Alan Carlos Nery dos Santos*, Ana Marice Teixeira Ladeia**, Jefferson Petto, M.Sc. ***

 

*Mestrando do Programa de Medicina e Saúde Humana da Escola Bahiana de Medicina, Salvador (EBMSP), Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Cardiovascular e Metabólica da Faculdade Social da Bahia, **Médica, Professora Adjunta do Programa de Mestrado e Doutorado em Medicina e Saúde Humana da Escola Bahiana de Medicina, Salvador, BA, Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Cardiovascular e Metabólica da Faculdade Social da Bahia, ***Pesquisador da Faculdade Social, Salvador, BA, Coordenador do Grupo de Fisioterapia e Pesquisa Cardiovascular, Discente do Programa de Doutorado da EBMSP

 

Recebido em 12 de setembro de 2016; aceito em 15 de dezembro de 2016.

Endereço para correspondência: Jefferson Petto, Av. Oceânica, 2717, Ondina, 40170-110 Salvador BA, E-mail: jeffersonpetto@yahoo.com.br

 

Resumo

Sabe-se que indivíduos com Diabetes Mellitus (DM) tipo II podem apresentar maior risco de desenvolver Doença de Alzheimer (DA). Assim, investigações têm sido conduzidas com o intuito de identificar a relação entre DM e DA. Outro ponto interessante é a possibilidade de haver um novo tipo de DM, caracterizada especificamente pela resistência insulínica cerebral. Nesse aspecto, o objetivo deste trabalho foi investigar na literatura evidências científicas sobre a existência de um novo tipo de DM, que poderá ser chamada de DM tipo III. Para esta revisão foram consultadas as bases de dados Lilacs, Medline, Scielo e Pubmed, utilizando em cruzamento os seguintes descritores: diabetes mellitus, doença de Alzheimer, hiperglicemia, peptídeos β-amilóides e seus correlatos em inglês e espanhol. Incluídos apenas artigos originais que utilizaram humanos ou animais, publicados entre 2000 e 2015, que versassem sobre a influência da insulina sobre a função cerebral. Dezesseis manuscritos compuseram a discussão deste trabalho, os quais relatam a existência de receptores específicos de insulina nos neurônios, sendo a insulina responsável pela sua proteção contra a deposição de peptídeos β-amiloides, neurotoxinas presentes em DA, que são moléculas geradas por clivagem proteolítica da proteína precursora da amilóide. Além disso, em situações de resistência insulínica cerebral, esses peptídeos promovem disfunção neural. Curiosamente, o mais intrigante é que alterações na ação da insulina cerebral independem da presença de DM tipo I ou II. Conclui-se de acordo com as evidências, que há fortes indícios científicos de um novo tipo de DM, então denominada de DM tipo III, caracterizada pela resistência insulínica cerebral.

Palavras-chave: diabetes mellitus, hiperglicemia, insulina cerebral, doença de Alzheimer.

 

Abstract

It is known that individuals with type II diabetes mellitus (DM) may increase the risk of developing Alzheimer's disease (AD). Thus, investigations have been conducted in order to identify the relationship between DM and DA. Another interesting point is the possibility of existing new type of DM, specifically associated with insulin resistance in the brain. In this regard, the objective of this study was to investigate the literature evidence on the existence of a new type of DM, which can be called DM III. For this review we consulted Lilacs, Medline, Scielo and Pubmed databases using the following combination of key words: diabetes mellitus, Alzheimer's disease, hyperglycemia, β-amyloid peptides and their correlates in English and Spanish. Included only original articles that used humans or animals, published between 2000 and 2015, aiming at the influence of insulin on brain function. Sixteen manuscripts were included in the discussion of this paper, which reported the existence of specific insulin receptors in neurons, and insulin the responsible for its protection against the deposition of β-amyloid peptides, neurotoxins present in AD, which are molecules generated by proteolytic cleavage of the amyloid precursor protein. Moreover, in situations of brain insulin resistance, these peptides promote neural dysfunction. Interestingly, the most intriguing is that changes in brain insulin action are independent of having type I or II DM. It is concluded that there is strong scientific evidence of a new type of DM, called type III DM characterized by brain insulin resistance.

Key-words: diabetes mellitus, hyperglycemia, cerebral insulin, Alzheimer's disease.

 

Introdução

 

O cérebro é um órgão formado principalmente por tecido nervoso: células da glia e neurônios. O tecido nervoso utiliza basicamente como substrato energético a glicose, uma falha na captação desse carboidrato provoca alterações na função dos neurônios. Acreditava-se que o cérebro juntamente com as hemácias, a mucosa intestinal e os túbulos renais não necessitavam da insulina para absorver a glicose [1]. No entanto, estudos na década de 2000 demonstraram a necessidade da insulina no cérebro para que o mesmo absorva adequadamente a glicose e a utilize como proteção das sinapses neurais [2-4].

A glicose atravessa a barreira hematoencefálica por difusão facilitada através de transportadores chamados de Proteínas Transportadoras de Glicose (GLUTs). Tais transportadores, ao contrário do que se pensava antes, são sensíveis à insulina e seu funcionamento depende diretamente da ação insulínica [5]. A administração de glicose pode melhorar a memória em seres humanos, e os efeitos da glicose sobre a memória parecem ser modulados pela sensibilidade à insulina, ou seja, níveis adequados de glicose necessitam de níveis adequados de insulina [6].

A insulina, que nos tecidos muscular e adiposo ajuda as células a armazenarem carboidratos e gorduras, no cérebro, age como regulador do metabolismo da glicose, influenciando diretamente na neurotransmissão, na aprendizagem, na memória e na neuroproteção [7]. Outros efeitos sobre as funções do sistema nervoso como a modulação do ciclo de apetite e saciedade, função reprodutiva, liberação de neurotransmissores, plasticidade sináptica e sobrevivência neuronal são também influenciados diretamente pela ação insulínica no sistema nervoso central [8].

A resistência insulínica afeta a passagem da insulina através da barreira hematoencefálica [9]. Isso contribui para disfunção cognitiva, redução da memória, aumento da atividade inflamatória no sistema nervoso central, ruptura do eixo adrenal hipotálamo-hipófise e, através da formação de placas senis, favorece o desenvolvimento da doença de Alzheimer (DA) [10]. Caracteriza-se por elevações de insulina periférica crônica, e é acompanhada por níveis reduzidos de insulina no cérebro e redução na atividade da insulina cerebral, causando um aumento do risco de deterioração da memória relacionado com a idade e a DA. Os possíveis mecanismos através dos quais estes riscos são maiores incluem os efeitos da hiperinsulinemia periférica na memória, inflamação do SNC, e regulação do peptídeo beta-amilóide [4].

Deteriorização nas sinapses causam perda de memória no início da DA, isso parece ser causado por oligômeros solúveis do β-amilóide, também conhecidos como ligantes difusíveis derivados do β-amilóide (ADDLs) [11], que agem como ligantes patogênicos altamente específicos localizados nas sinapses particulares. Esta ligação provoca estresse oxidativo, perda de espinhos sinápticos, e redistribuição ectópica dos receptores críticos a plasticidade e memória que seriam os receptores de insulina [12].

Já se relata a existência de um mecanismo de proteção natural que protege as sinapses contra a deterioração causada pelos ADDLs, e tem como principal responsável a insulina, que causa uma redução acentuada da ligação de ADDLs patogênicos nos receptores de insulina.

Diante dessas descobertas e da relação direta entre a resistência insulínica e a DA, alguns trabalhos apontam para a existência de um novo tipo de diabetes. Portanto, a presente revisão buscou evidências científicas que apoiem a ideia de um novo tipo de diabetes que afeta especificamente o sistema nervoso central, caracterizada pela resistência insulínica cerebral, denominada de Diabetes Mellitus Tipo III.

 

Métodologia

 

Revisão sistematizada da literatura, realizada no período de julho a dezembro de 2015. Foram consultadas as bases de dados Lilacs, Medline, Scielo e Pubmed, utilizando em cruzamento os seguintes descritores: diabetes mellitus, doença de Alzheimer, hiperglicemia, peptídeos β-amilóides e seus correlatos em inglês e espanhol.

Para a composição da discussão desta pesquisa foram utilizados apenas artigos originais, analíticos ou descritivos, feitos com seres humanos ou animais, publicados entre 2000 e 2015. Excluídos os artigos de revisão, teses de mestrado e doutorado, bem como os artigos que não discutiam especificamente sobre o tema.

 

Resultados

 

Foram encontrados 62 artigos dos quais 11 foram excluídos por abordarem apenas os aspectos clínicos da Diabete Mellitus e da Doença de Alzheimer e outros 35 artigos por serem trabalhos de revisão. Restaram, portanto, 16 artigos que compuseram a discussão deste trabalho.

 

Discussão

 

Em condições fisiológicas, a glicose é a fonte primária de energia para o cérebro e o fornecimento contínuo desse substrato é essencial para manter o funcionamento desse tecido. Até 2000, acreditava-se que a insulina era responsável pela difusão adequada da glicose, através da membrana plasmática, somente nas células musculares e adiposas. Entretanto, em 2001, McAllister et al. [2] publicaram um artigo no qual foram pesquisados os mecanismos de transporte e absorção da glicose cerebral. Evidenciou-se, neste artigo, a necessidade da insulina como facilitador da passagem da glicose pela membrana plasmática neuronal.

Já em 2009, Yin et al. [3] verificaram que os transportadores cerebrais de glicose (GLUT 1 e 3) são afetados severamente diante da resistência insulínica, comprometendo a absorção da glicose pelos neurônios. Finalmente em 2011, no estudo de Cheng et al. [4] foram encontrados receptores específicos de insulina no hipocampo e no córtex cerebral, ratificando definitivamente que o tecido nervoso depende da insulina para a adequada absorção da glicose.

Embora haja produção de insulina pelo sistema nervoso central, a maior parte dela é de origem pancreática e, segundo Umegaki [11], a resistência à insulina presente na maioria dos indivíduos com DM tipo II pode induzir a deficiência da insulina no sistema nervoso central. Estudo realizado por Dou et al. [12] aponta a DM tipo II como causa da diminuição de memória e aprendizagem, constatada pela interrupção da sinalização dos receptores de insulina quando testados em ratos geneticamente modificados. Isso novamente aponta para a ideia de que a resistência insulínica não ocorre apenas nos tecidos muscular e adiposo, mas também no tecido cerebral central.

Estudo [13] que investigou se a resistência à insulina estaria associada à redução na taxa metabólica de glicose em áreas conhecidas por serem vulneráveis em pacientes com DA, seus resultados sugerem que a resistência à insulina pode ser o fator de risco para o desenvolvimento da DA e em parte devido à efeitos prejudiciais sobre as reduções na taxa metabólica de glicose cerebral.

De acordo com Biessels et al. [14], o próprio cérebro se torna resistente à insulina, independentemente do restante do corpo, e isso promove ou mesmo desencadeia eventos fisiopatológicos que apoiam a ideia de um tipo de DM essencialmente cerebral. Fato confirmado pelo estudo de Bonfim et al. [15], no qual foi visto que a sinalização da insulina é interrompida no cérebro, através de mecanismos semelhantes, mas independentes aos que conduzem a resistência à insulina no DM tipo II.

Para Y Zhong et al. [16], que investigaram as funções de hiperinsulinemia e a resistência à insulina no cérebro, pacientes com hiperinsulinemia apresentam piores funções cognitivas do que aqueles sem hiperinsulinemia. Da mesma forma, os idosos com resistência à insulina apresentaram menores escores cognitivos do que aqueles sem resistência insulínica, ou seja, tanto a hiperinsulinemia quanto a resistência à insulina cerebral causam diminuição da memória. Seguindo esse raciocínio o estudo de Takeda et al.[17], realizado em camundongos, constatou que ao se bloquear a atividade da insulina no cérebro ocorre comprometimento da memória e da capacidade de aprendizado nestes animais.

O que também pode ser confirmado nos estudos de Farris et al. [18] que afirmam que Hiperinsulinemia (ambos em jejum e após uma carga de glicose) tem sido correlacionada com demência em pacientes não diabéticos, com evidência epidemiológica sugerindo os efeitos da insulina no cérebro diretamente em vez de por meio de fatores vasculares.

Dentre os estudos que pesquisaram sobre a ação da insulina no encéfalo, o estudo de Freude et al. [19] identificou que a insulina pancreática age especificamente sobre os neurônios, não interferindo no entanto na absorção da glicose pelas células da glia. Segundo os autores, a insulina pancreática não age também nas células endoteliais cerebrais, diferentemente do que ocorre nas células endoteliais dos tecidos periféricos.

Para Zhao et al. [20], fatores que afetam a sinalização dos receptores de insulina neuronal e causam resistência à insulina favorecem a ação dos peptídeos dos oligômeros β-amilóides, proteínas que perturbam as sinapses cerebrais, e são a gênese da DA. Isso é consistente com outro estudo realizado por esse autor [21], apontando a insulina como um protetor dos neurônios contra o ataque dos peptídeos dos oligomeros β-amilóides, evitando a toxicidade e a disfunção dos neurônios por essas moléculas.

O mesmo afirma Ho L et al. [22] em seu estudo que é consistente com a hipótese de que a resistência à insulina pode ser um mecanismo subjacente responsável pelo aumento do risco relativo observado na neuropatia da DA e apresenta a primeira evidência para sugerir que a sinalização dos receptores de insulina pode influenciar a produção de peptídeos β amiloides no cérebro.

Finalmente o estudo conduzido por De la Monte et al. [23] aponta forte evidência de que a resistência insulínica cerebral representa a forma de DM que seletivamente aflige o cérebro. Os estudos em humanos e em animais mostraram também que a deficiência no mecanismo de sinalização da insulina pode ocorrer na ausência de DM Tipo I ou II.

Portanto, os dados apontam que a resistência insulínica cerebral é intrinsecamente uma doença causada por deficiências neuroendócrinas seletivas na ação da insulina no cérebro, independente se o indivíduo apresenta DM tipo I ou II. Este estudo fornece uma forte razão para um estudo futuro e mais aprofundado dos mecanismos subjacentes e associação entre a resistência à insulina e a redução na taxa metabólica de glicose cerebral. O desafio para estudos futuros será determinar qual estratégia preventiva deverá ser aplicada em pacientes com resistência à insulina cerebral, a fim de evitar os danos por ela causados. Muitas dessas estratégias, tais como exercícios físicos, são de baixo risco e custo, com inúmeros benefícios para a saúde e para melhorar a função cognitiva em adultos com comprometimento leve da cognição.

 

Conclusão

 

Conclui-se que há fortes indícios científicos que apontam para a existência de um novo tipo de DM, que poderá ser chamada de DM tipo III, caracterizada pela resistência à insulina cerebral. Essa ideia é apoiada pelos resultados mostrados nos estudos, os quais observaram que o mecanismo de interrupção da sinalização de insulina cerebral é semelhante ao que conduz a resistência à insulina na DM tipo I ou II. Essa alteração leva finalmente a diminuição da memória e a morte neuronal. Portanto, diante das evidências científicas aqui apresentadas, sugere-se a denominação de um novo tipo de DM, que especificamente afeta as células neuronais do cérebro, chamada de DM tipo III.

 

Referências

 

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