Citius, altius, fortius: a qualquer preço?

Autores

  • Paulo Tarso Veras Farinatti UERJ
  • Jean-Louis Peytavin Atlântica Editora

DOI:

https://doi.org/10.33233/rbfe.v8i3.3565

Resumo

O noticiário recente destacou o fato de atletas brasileiros terem sido pegos em exames anti-doping realizadosem Presidente Prudente/SP, tendo se valido da eritropoietina para aumentar seu desempenho.

Em um conto de ficção cientí­fica, o autor americano Ray Bradbury explora o tema da igualdade, imaginando um desportista excepcional que tem de usar handicaps, como solas de chumbo, para não ser superior aos concorrentes com capacidades inferiores. Pouco a pouco, impondo-se tal ideologia igualitarista, a beleza e a inteligência tornam-se suspeitas para a maioria dos feios e dos medí­ocres. As pessoas naturalmente bonitas passam a se esconder atrás de máscaras e os inteligentes a fingirem-se de idiotas.

Ao contrário, em nossa sociedade promovemos e adulamos o desportista fora dos padrões, muitas vezes tolerando, às escondidas, a fraude do doping. Em longo prazo, os resultados dessa valorização exacerbada podem representar um "˜espelho"™ da ficção de Ray Bradbury: sem controle, a ajuda quí­mica tornar-se-á obrigatória para que os atletas sejam, de novo, iguais na linha de partida. O melhor ganhará, mas todos sobrecarregados em "˜aparentados"™ da eritropoietina. Já se disse em certa oportunidade que os desempenhos do Tour de France, por exemplo, seriam impossí­veis para ciclistas que não utilizassem esse hormônio.

O doping desenvolveu-se rapidamente a partir dos anos 1970, com o uso dos anabolizantes, anfetaminas e beta-bloqueadores, mas sofisticou-se a partir dos anos 1990. Apesar da melhora da fiscalização, o futuro da luta contra o doping é difí­cil e, para alguns, de sombrio prognóstico. Existe uma progressiva expansão de seu uso na juventude, especialmente no meio da musculação, no qual circulam produtos sem controle, desde os clássicos esteróides anabólicos até novidades como inibidores da miostatina. Fala-se também em doping mental, usando-se produtos inicialmente prescritos para os distúrbios de atenção das crianças (ritalina), distúrbios do sono (modafinil) ou ainda para a doença de Alzheimer, a fim de aumentar o desempenho em exames acadêmicos.

A Sociedade Brasileira de Fisiologia do Exercí­cio posiciona-se frontalmente contra todas as formas de doping. Para lá de efeitos colaterais frequentemente danosos, extensivamente descritos pela literatura, a aceitação, ainda que subreptí­cia, desse tipo de prática subverte os princí­pios que deveriam reger as competições desportivas, como o fair-play, ferindo de morte valores que emanam do assim chamado "˜espí­rito desportivo"™. O desenvolvimento tecnológico nas áreas de medicina, biomecânica, fisiologia do exercí­cio, bioquí­mica, dentre outros campos do conhecimento vem proporcionando as condições para que os limites de desempenho sejam, a cada competição, redefinidos. No entanto, tal desenvolvimento coloca-se a serviço do atleta e, porque não dizer, da humanidade de forma geral. Fazer do progresso tecnológico ferramenta a serviço da vitória a qualquer custo, em detrimento da saúde dos atletas, da lisura das competições e, portanto, do próprio desporto, constitui atitude que deve ser condenada, por criminosa e antiética.

Aqueles que fazem da pesquisa em fisiologia do exercí­cio sua área de atuação e interesse devem refletir sobre os limites da aplicação do conhecimento cientí­fico para melhorar o desempenho humano. Para além das questões relativas ao doping, discutidas em profundidade por diversos autores, nota-se que essa necessidade se faz tão mais premente quando se percebem os avanços na área da genética. É tênue a fronteira entre manipulação genética indesejável e o desenvolvimento de formas éticas para detecção de talentos, por exemplo. Não são poucos os que consideram cabí­vel a possibilidade de manipulação genética para melhorar o desempenho atlético, não a entendendo como forma de doping. Outros, porém, destacam ser frágil a fronteira entre o desejo de conhecer melhor o potencial de desempenho dos atletas desde idades precoces e a tentação de uma seleção arbitrária que nos remeteria aos ideais eugênicos de ditaduras fascistas do passado.

Como se percebe, a discussão em torno do tema da melhoria do desempenho humano é algo atual e envolve aspectos que ultrapassam o ganho de milésimos de segundo ou milí­metros em provas atléticas. A aceitação ou recusa do doping como recurso para "experimentar os limites do homem" traduz uma visão de mundo. De um lado seus defensores acenam com argumentos que se apóiam no cientificismo mais infame (é a ciência que desenvolve o doping e não se pode barrar a ciência), em hipotéticas vantagens econômicas (seria bom para a indústria farmacêutica etc) ou em um falso liberalismo (é direito do atleta se drogar...). De outro, alinham-se aqueles que defendem ser preciso balizar o desejo de aumentar cada vez mais os limites do corpo humano por valores éticos. Valores que, afinal, dão base para as competições desportivas e, porque não dizer, para a própria ciência – o entendimento de que, no fim das contas, nada deveria ser mais importante do que os próprios seres humanos...

Biografia do Autor

Jean-Louis Peytavin, Atlântica Editora

Médico, D.Sc., Université Lyon II, France

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Publicado

2009-09-10