Qualidade de vida e o processo de trabalho em saúde: contribuições para o debate

Autores

  • Luciano Garcia Lourenção FAMERP

DOI:

https://doi.org/10.33233/eb.v10i2.3842

Resumo

Desde a década de 70 tem surgido uma grande preocupação em investigar, por meio dos indicadores sociais, os ní­veis de satisfação, bem-estar e qualidade de vida nas populações e, a partir daí­, identificar quais os determinantes destes estados.
Entre os assuntos que têm suscitado o interesse de pesquisadores de várias áreas, em âmbito nacional e internacional, estão as questões referentes ao mundo do trabalho e suas repercussões na saúde dos indiví­duos, especialmente os aspectos referentes í  saúde dos profissionais da área da saúde. Nos últimos anos, a avaliação da qualidade de vida se tornou cada vez mais reconhecida e utilizada nesta área. Inúmeros instrumentos foram desenvolvidos para mensuração da qualidade de vida e vários trabalhos foram realizados com os mais diversos grupos de trabalhadores [1,2].
Para avaliar qualidade de vida é importante, antes de tudo, entender sua conceituação. Relatos apontam que o termo foi empregado pela primeira vez na literatura médica na década de 1930. Na década de 1970, Campbel (1976) apud Awad e Voruganti [3] afirmou que qualidade de vida é uma vaga e etérea entidade, algo sobre a qual muita gente fala, mas que ninguém sabe claramente o que é, tentando elucidar as dificuldades na conceituação desse termo.
Alguns autores referem que a utilização do conceito de qualidade de vida apresenta dois aspectos: um cotidiano, empregado pela população em geral; e outro cientí­fico, usado pelos profissionais das diferentes áreas da saúde [4].
O interesse por esse conceito na área da saúde é recente, originado das transformações nos paradigmas que influenciaram mudanças nas polí­ticas e nas práticas do setor saúde nos últimos anos. Ter qualidade de vida depende de fatores intrí­nsecos e extrí­nsecos. Assim, há uma conotação diferente de qualidade de vida para cada indiví­duo, que é decorrente de sua inserção na sociedade. Portanto, não é possí­vel padronizar qualidade de vida, pois ela tem conotação individual, dependendo dos objetivos, das metas traçadas e das pretensões individuais [4].
Ao se pronunciar, durante a abertura do 2º Congresso de Epidemiologia, Rufino Netto [5] considerou como qualidade de vida boa ou excelente aquela que ofereça um mí­nimo de condições para que os indiví­duos nela inseridos possam desenvolver o máximo de suas potencialidades, sejam estas: viver, sentir ou amar, trabalhar, produzindo bens e serviços, fazendo ciências ou artes.
No mesmo discurso, o autor afirmou ainda que falta o esforço de fazer da noção um conceito e torná-lo operativo.
Em 1994, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reuniu diversos especialistas de vários paí­ses com o objetivo de conceituar qualidade de vida. Definida como a percepção do indiví­duo sobre sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações, a qualidade de vida é cercada de multidimensionalidade e subjetividade que dificultam sua conceituação [6]. Não deve ser medida apenas pelo prolongamento da existência, pois nela influem diversos fatores como saúde, moradia, trabalho, lazer e satisfação, entre outros [7].
Destaca-se, ainda, que qualidade de vida consiste numa noção humana relacionada ao grau de satisfação na vida familiar, amorosa, social e ambiental e í  estética existencial. Pressupõe a capacidade de sintetizar os elementos que uma sociedade considera como padrões de conforto e bem-estar. O termo é muito abrangente e reflete conhecimentos, experiências e valores individuais e coletivos que variam de acordo com o momento histórico, o espaço e a situação que o(s) indiví­duo(s) vivencia(m), sendo uma construção social influenciada pela relatividade cultural. Assim, quanto mais aprimorada a democracia, mais ampla a noção de qualidade de vida, o grau de bem-estar da sociedade e de igual acesso a bens materiais e culturais [6].
Porém, sabe-se que a subjetividade que envolve o conceito de qualidade de vida está relacionada í  percepção que cada indiví­duo tem sobre seu estado de saúde e sobre os aspectos não médicos do seu contexto de vida, e a multidimensionalidade se refere í  concepção de que a qualidade de vida depende de vários aspectos/dimensões [8].
Diante disso, a qualidade de vida se torna algo pessoal, podendo ser avaliada apenas pelo indiví­duo e não por cientistas ou profissionais de saúde. Qualidade de vida é, portanto, uma importante variável na prática clí­nica e na produção de conhecimentos na área da saúde. Nesse aspecto, a melhoria da qualidade de vida passou a ser um dos resultados esperados, tanto das práticas assistenciais quanto das polí­ticas públicas para o setor, nos campos da promoção da saúde e da prevenção de doenças [9].
Nos últimos anos tem-se observado uma intensificação no debate sobre as mudanças necessárias na gestão e organização do trabalho em saúde. Tal discussão ganha espaço no bojo das transformações que afetam o mundo do trabalho, as organizações em geral e as organizações de saúde.
As dificuldades do exercí­cio profissional, abordando algumas das caracterí­sticas inerentes ao cuidado em saúde que, isoladamente ou em seu conjunto, definem um ambiente profissional formado por intensos estí­mulos emocionais que acompanham o adoecer, como o contato frequente com a dor e o sofrimento, o lidar com a intimidade corporal e emocional, o atendimento de pacientes terminais, o lidar com pacientes difí­ceis/queixosos, rebeldes e não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos e/ou cronicamente deprimidos e o lidar com as incertezas e limitações do conhecimento e do sistema assistencial que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam certezas e garantias [1].
São muitos determinantes que comprometem a saúde e a qualidade de vida de profissionais de saúde e nesse contexto, avaliar a qualidade de vida (QV) destes profissionais permite subsidiar ações para melhorar a qualidade de vida pessoal e profissional destes e, consequentemente, garantir uma melhoria na qualidade do atendimento prestado aos pacientes.
Vários estudos apontam o quanto que, no cotidiano de trabalho das instituições de saúde, o cuidador profissional, de modo geral, não valoriza o ser cuidado, muitas vezes negligenciando o cuidado í  sua própria saúde [1,10].
A fragmentação dos processos de trabalho prejudica as relações entre os diferentes profissionais da saúde e destes com os usuários. O trabalho em equipe, assim como o preparo e disposição pessoal dos profissionais para lidarem com a dimensão subjetiva presente nas práticas de atenção í  saúde, tem deixado a desejar [10].
O trabalho em saúde é complexo e exige reflexão, ou seja, que as decisões sejam tomadas de forma articulada pelas diversas áreas do conhecimento, mediados pela dimensão ética e polí­tica.
Neste contexto, é relevante destacar que as relações de cuidado acontecem na nossa vivência diária, na famí­lia, no trabalho, no conví­vio social em geral. Por isso, é necessário entender que o cuidar é uma maneira de ser de cada um, incorporado a um comportamento coparticipante de progressão individual e/ou coletiva, aglutinados às dimensões éticas e morais.
No contexto da atuação profissional em saúde, onde a própria tarefa, que é o cuidar, causa grande ansiedade, a preocupação com a qualidade de vida é importante e necessária, desde o processo de formação, favorecendo o autoconhecimento e o apoio para trabalhar, ainda como estudante, os medos e ansiedades inerentes ao processo de cuidar dos outros e de si.
O cuidar, como essência do processo de trabalho em saúde oportuniza a vivência de práticas pelo contato direto com os seres humanos em processo de sofrimento, coloca os profissionais diante de seus próprios conflitos e frustrações. Assim, é importante atentar que a qualidade de vida exige de todos nós a consciência de cultivar o interesse pela nossa vida, pela vida das outras pessoas. Trata-se de um compromisso em aperfeiçoar a arte de viver, de educar e cuidar.

Biografia do Autor

Luciano Garcia Lourenção, FAMERP

Professor Adjunto Doutor do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto – DESC/FAMERP, Coordenador do Curso de Enfermagem da União das Faculdades dos Grandes Lagos – UNILAGO, São José do Rio Preto, Avaliador ad hoc de cursos INEP/MEC

Referências

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Publicado

2020-01-02