Verdades mentirosas

Autores

  • Marco Antônio Guimarães da Silva UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v8i5.1851

Resumo

Há poucas coisas que não devem ser admitidasem público. Avolatilização de gases oriundos do intestino é uma delas e deve permanecer anônima. De autoria incógnita, é constrangimento menor. Mas a assunção da culpa acaba por elevar o evento e o culpado a dimensões incomensuráveis de vergonha e humilhação. Mas nem todas as culpas assumidas causam embaraço: o reconhecimento público do erro, se acompanhado de justo arrependimento e providências circunstanciais, é uma mostra de coragem e dignidade. Essa atitude de humildade, longe de fragilizar a imagem do culpado no meio social, acaba por humanizar as relações entre ele e a sua comunidade.

Obviamente, a não assunção de um erro ou de uma culpa implica em uma mentira que, í  dependência de sua magnitude, pode, eventualmente, não ter conseqüências ou talvez incomodar, no caso citado no primeiro parágrafo, quando muito, aqueles com olfato apurado. O problema está na perpetuação da mentira e na sua utilização como ato rotineiro. O mentiroso acaba por acreditar que a sua mentira é mais pura das verdades e não se dá conta dessa transformação. É o que chamamos de "verdade mentirosa". Existem situações em que não se pode admitir a prática da "verdade mentirosa", porque elas podem pôr em risco a própria subsistência humana.

Essas "verdades mentirosas" estão nos mais diversos setores da sociedade, que não admitem o erro de não cumprirem com competência a sua função. Deixam, por exemplo, que leite e alimentos contaminados sejam vendidos para o público; ou que as encostas desmoronem, causando transtornos e mortes, como as assistidas e vividas por todos os que vivem no Rio de Janeiro.

A área da pesquisa e da produção cientifica não é exceção. Afinal, ela também é exercida pelo ser humano, que mente e erra, e as conseqüências de seus erros e mentiras podem igualmente ser fatais. Sempre cito, quando quero explicar para meus alunos os erros alfa e beta, o graví­ssimo equí­voco cometido por uma pesquisa, realizada nos EUA, que dizia que associar um sal medicamentoso a um contraceptivo oral não causava formações neoplásicas. A pesquisa partia do pressuposto que não haveria diferenças estatí­sticas significativas (p < 0,005) entre os grupos controle e experimental. O erro nesse tipo de pesquisa, como sabem todos os que trabalham com a investigação, é o Tipo II ou Beta, ou seja, afirmar que não existem diferenças, quando elas, na realidade, existem. E elas existiam. No caso em questão, porque o poder do teste estatí­stico estabelecido estava baixo e não conseguia detectar as diferenças, que na verdade existiam. Ou seja, se as mulheres seguissem a recomendação da pesquisa, corriam sério risco de desenvolver a neoplasia.

Já escrevi que, no que concerne as publicações cientí­ficas, todos somos culpados até que se prove o contrário. O número de equí­vocos cometidos em pesquisas, mesmos nos ensaios clí­nicos randomizados da área de saúde, extrapola o limite do aceitável e acaba por tornar o pesquisador um grande mentiroso, ainda que às vezes ele não o saiba. Sempre exigi dos meus alunos de especialização, mestrado e doutorado, avaliações crí­ticas de todos os autores citados e contextualizados respectivamente nas suas monografi as, nas suas dissertações e nas suas teses. Essa medida, de um certo modo, permite descobrir as verdades relativamente absolutas, vendidas para o público menos atencioso como verdades "verdadeiras". Tentei também, em vão, em uma reunião dos editores de revistas na área de fisioterapia, defender a idéia da análise prévia dos autores citados nas referencias. Diante de tamanha falta de evidências cientí­ficas, mostradas nos mais diversos periódicos, inclusive no nosso, resolvemos que, a partir do próximo ano, só receberemos artigos de revisão bibliográfica que venham acompanhados com as avaliações crí­ticas de todos os autores estudados. Esperamos, assim, oferecer uma valiosa contribuição para os nossos leitores, que poderão ter a oportunidade de não se deixar guiar por resultados que estão a léguas da verdade cientí­fica ou de qualquer verdade.

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Publicado

2018-01-01