Entre um cruzado da esquerda e um gancho da direita, uma requintada barbárie

Autores

  • Marco Guimarães

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v16i1.302

Resumo

Ia escrever uma crônica falando sobre o aparente rescaldo que a presidenta tentou fazer através do seu discurso, logo após ter sido declarada vencedora. Refiro-me, especificamente, ao chamamento para a união que a candidata eleita propôs, não só aos polí­ticos como, também, às duas belicosas facções criadas no âmbito da população, no perí­odo pré-eleitoral.

Creio que o que se espera de um presidente recém-eleito que esteja propondo a paz é que ele peça, e até exija, que os militantes de seu partido, feito loucos, parem de atacar alguns órgãos da imprensa, merecendo esta ou não tais esses ataques. A presidenta poderia ter feito, de forma adaptada, uma leitura da oração de São Francisco (exceto, por motivos óbvios, da parte em que ele diz, é dando que se recebe) e dito: "Brasileiras, brasileiros, é hora de perdoar os equí­vocos cometidos por aqueles que não simpatizavam conosco e parar de ofendê-los. Prometo-lhes que no meu novo governo não mais haverá motivos para que esses tais "equí­vocos" sejam explorados pela revista A ou pelo jornal B". Por questões de educação, a presidenta poderia também fazer também referência aos candidatos derrotados, que, momentos antes, haviam lhe parabenizado pela vitória. Parece que se redimiu e no dia seguinte lhes telefonou. Menos mal, a cordialidade prevaleceu.

            Tivesse seguido adiante, essa seria a última crônica a tratar do tema, porque toda essa estória está esfriando e acabará rapidamente nocauteada pela memória do brasileiro que, como sabemos, é curtí­ssima.

            Como tenho que controlar o teclado do meu computador, para que ele não gere palavras que ultrapassem o espaço disponí­vel no jornal, sou obrigado a interromper o assunto. Prefiro, então, falar um pouco sobre uma confissão que Fleur Pellerin, Ministra da Cultura da França, fez ao canal de televisão Canal+, quando lhe perguntaram sobre os livros do francês Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura.

            Em um ataque de sinceridade, ou de ingenuidade, a Hollandete contou que não conhecia as suas obras e que há dois anos não lia um livro, exceto os muitos textos de leis, jornais e noticias AFP. Houve constrangimentos, é claro, e até mesmo uma sugestão para a sua demissão, feita no artigo Exquise barbarie, escrito pelo jornalista Claude Askolovitch (Le Huffington Post, associado ao grupo Le Monde).

            A assoberbada ministra da cultura deveria saber que há coisas (poucas) em sua área que não devem ser admitidas em público. Essa é uma delas. Por sua vez, a ministra Segolène Royal, ex-mulher de Hollande e ex-candidata í  presidência francesa, não perdeu a oportunidade de declarar que ela, "naturalmente", tem tempo para ler... Literatura não é brincadeira.

A assunção de tal declaração torna Pellerin incompatí­vel com o exercí­cio de uma função que pertence a uma pasta ministerial, que deve, justamente, incentivar as leituras e promover as artes e a cultura. Ela poderia, ao menos, ter-se lembrado do que Santo Agostinho dissera quando lhe perguntaram o que era o tempo: "Se não me perguntarem eu sei. Se me perguntarem, ignoro. Ah! Um problema, ela provavelmente sequer sabe quem foi Santo Agostinho.

            Se a desditosa declaração da ministra causou espanto, o que não dizer, também, da declaração de um mais alto dirigente de um paí­s, que se gabou de alcançar este ou aquele posto, sem ter, para tal, precisado estudar? Nem mesmo os recursos financeiros e a agenda positiva que destinou às universidades federais (coisa que seu antecessor, da oposição, não fizera) seriam capazes de redimi-lo da infeliz declaração. Mas isso é passado e, como disse lá em cima, a nossa memória já se encarregou de sepultar esse fato, com um pesado cruzado de esquerda ou com um poderoso gancho de direita.

 

Biografia do Autor

Marco Guimarães

Marco Guimarães é autor dos livros: De escritores, fantasmas e mortos, Meu pseudônimo e eu (nomeado como um dos 20 finalistas do Premio Portugal Telecom de Literatura, em 2012, e publicado, também, na Croácia) e A bicha e a fila, escrito a quatro mãos com o escritor angolano Manuel Rui (publicado no Brasil e em Angola). Tem, ainda, dois romances inéditos (A escolha e O espelho) e, atualmente, é cronista colaborador do Jornal Diário do Comércio de Minas Gerais, com crônicas publicadas í s sextas feiras. Maiores informações sobre os livros na página: www.marcoguimaraes.com

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Publicado

2016-07-01