A ilusão do mundo real

Authors

  • Marco Antônio Guimarães da Silva UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v11i5.1589

Abstract

inesperada e indesejada estadia dos 33 mineiros chilenos,
durante sessenta e nove dias, em uma caverna a setecentos
metros de profundidade, me remete diretamente para Platão.
A sua mais completa obra, A República, engloba conceitos de
constituição, vida pública e relação do cidadão com o estado.
Trata-se talvez da primeira utopia literária, ainda que Platão
a prefira chamar de eutopia (o mais belo lugar) em vez de
utopia (sem lugar). O que interessa na citada obra, nesse
momento, está no Livro VII, que pode ser considerado o mais
completo resumo de toda A República e que alude í  dialética
e ao conhecimento. Um dos temas desenvolvidos é a alegoria
da caverna, "a imagem de nossa natureza, no que diz respeito
í  educação e carência de educação".
A história contada por Platão envolve algumas pessoas
mantidas como prisioneiras no fundo de uma caverna. Todos
estão acorrentados diante de uma parede, e não lhes é permitido
se virar e olhar para trás. Estão condenados a passar toda a
vida olhando para a parede. Atrás do grupo de prisioneiros, há
uma fogueira e uma trilha, essa última utilizada pelos carcereiros.
Os objetos carregados por esses carcereiros projetam uma
sombra na parede em frente aos prisioneiros, os quais passam
toda a vida pensando que cada sombra projetada nessa parede
é um objeto real. Um belo dia um dos prisioneiros se liberta
e descobre que as sombras projetadas na parede não eram
objetos reais. O que ele julgava ser a realidade (um mundo
real) era, na verdade, um desfi le de sombras. Uma vez fora da
caverna e já adaptado í  luz natural o prisioneiro liberto resolve
voltar para contar aos outros, ainda no cativeiro, a descoberta
que fizera e explicar-lhes como as coisas realmente eram. De
volta í  caverna e com a visão não mais adaptada í  escuridão,
acaba tropeçando. Tenta, em vão, mostrar como as coisas são
de fato para os seus companheiros de cárcere. É obrigado a
desistir, quando começa a ser apedrejado. "Nós conseguimos
ver muito bem, o cego é você", dizem-lhe os prisioneiros. Eles
permanecem condenados í  contemplação das sombras sem
jamais descobrir a verdade.
Os mineiros í  espera do resgate demonstraram um grau
de civilidade, de educação, de generosidade e de amizade,
que fizeram daquele ambiente um lugar onde os problemas
parecem ter sido muito bem gerenciados e resolvidos. Para
alguns, esse ambiente, criado nas profundezas, talvez tenha
sido melhor do que o ambiente onde cada um vive na superfí­cie.
Afinal, ali, longe de muitos aborrecimentos, puderam
ter um tempo para a reflexão, um tempo para pensar na sua
própria existência e nos valores atribuí­dos a cada coisa em si;
um tempo para ver as verdades por trás das aparências. Talvez
tenham descoberto que o mundo real que eles supunham ver
e conhecer no cotidiano era fantasia. Assim deram-se conta
de que as verdadeiras sombras não estavam na caverna a setecentos
metros de profundidade. As verdadeiras sombras os
acompanhavam nos seus dia a dia, levando-os desprezar a luz
da razão em detrimento de manipulações feitas pelos muitos
especialistas. Estavam mergulhados, em plena luz do dia, em
verdadeiras trevas com relação ao conhecimento.
A República influenciou Santo Agostinho (Cidade de
Deus), Tomas Morus (Utopia) e, mais modernamente, o
falecido Saramago (A Caverna).
Oxalá possamos, influenciados também por Platão, descobrir
o mundo real ainda em vida; que possamos tocá-lo,
ouvi-lo, senti-lo, sem que precisemos, para isso, permanecer
sessenta e nove dias presos a setecentos metros de profundidade.

Published

2017-12-09