Sob a tutela do Grande Irmão

Authors

  • Marco Antônio Guimarães da Silva UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v8i2.1845

Abstract

No momento inicial do curso de Recuperação funcional baseada em evidências, que ainda ministro em cursos de pós-graduação, tenho o hábito de fazer uma aparente digressão: remeto-me ao passado e lembro do filme o "Mágico de Oz", para falar sobre a importância da pergunta na pesquisa. Esclareço: no filme, ao dar-se conta de que deveria encontrar a cidade encantada, a pequena Dorothy pergunta a Glenda (bruxinha boa) por onde deveria começar para encontrar a tal cidade. A resposta de Glenda: todo bom começo é sempre uma boa pergunta. Analogia í  parte, a idéia é mostrar que uma boa pesquisa tem que ser sempre precedida de uma boa pergunta. Um exemplo que dou no curso já é um clássico: será que existe relação entre um programa X de televisão e o aumento do grau de violência em crianças? Ato contí­nuo, antes de, no curso, trabalhar esse exemplo (para descontração), lanço uma outra pergunta: Será que o programa "Grande Irmão", que a rede Globo insiste em denominar de "Big Brother", contribui para aumentar o grau de idiotização e alienação de uma população? No contexto da aula, uso os exemplos a fim de, didaticamente, ilustrar a importância que uma boa pergunta representa para a uma boa pesquisa.

Aproveitando o fato de que, nos últimos dias, passei diante do Hospital Egas Muniz, em Lisboa, - cujo nome me remete í  lobotomia e, derivativamente, para alienação imposta - estabeleço o elo que precisava para dar o rumo, sem perder o prumo, para este editorial. Tento, portanto, refletir, e espero também induzir desde logo o leitor í  reflexão, sobre o porquê de os resultados do IBOPE para o "Grande Irmão" conseguirem alcançar tão incrí­veis ní­veis de audiência. Satisfazer í  curiosidade descobrindo o que faz o vizinho ao lado sempre foi um divertido passatempo de pessoas que viviam em comunidades menores. O habitar em um grande centro, em edifí­cios de apartamentos que impõem um certo isolamento, terminaria por se constituir em uma barreira natural que acabaria por matar o hábito da curiosidade sobre alheia. Mas parece que as idéias sobre as nossas privacidades andaram mudando e muito.

Afinal, de onde surgiu a idéia de alimentar toda uma população, ou parte dela, com a matéria prima bisbilhotice?

Em 1991, o projeto Biosfera II, precursor dos reality show, retratava a experiência de um grupo de cientistas, com transmissão pela TV, que se isolaram em uma casa sobrevivendo apenas ao que lá existia.

O surgimento da internet e das webcams otimizou a transmissão e permitiu que, em qualquer parte do mundo, o internauta tivesse acesso, com permissão consentida, às imagens transmitidas desde a intimidade da casa do transmissor. A experiência pioneira com a webcam deve ser creditada Jennifer Ringley. O cinema também oferece a sua contribuição para o tema em questão e o filme O show de Truman faz na telona uma releitura de George Orwell.

De Volta ao "Grande Irmão" da aldeia global, e desde já pedindo desculpas pelas heresias sociológicas que venha a cometer, tomo a ousadia de usar Weber para citar dois aspectos relacionados a esse flagelo que vem tomando o nosso cotidiano, já tão sobrecarregado de desgraças, e que devem ser considerados para as futuras reflexões.

O primeiro desses aspectos refere-se ao poder, entendendo-se aqui o poder como as oportunidades que a aldeia global utiliza para impor sua vontade sobre a vontade dos globalizados, servindo-se "magnificamente" do fascí­nio que a mí­dia exerce sobre os "lobotomizados". O publico alvo, aqui caracterizado como pacientes metafóricos da técnica de Egas Muniz, aguarda ansiosa e diariamente o desenrolar de mais um capitulo muito bem editado mas que igualmente prima pelo grotesco

O outro aspecto seria a troca entre a aldeia global e o globalizado, que aponta para todo um complexo sistema de forma de pagamento: você me oferece a oportunidade de compartilhar de uma medí­ocre rotina do dia-a-dia de um grupo de pessoas travestidas de pseudo-atores e, em contrapartida, eu assisto às mediocridades ali transmitidas e, sobretudo, dou a minha contribuição financeira, telefonando para o programa e enchendo as burras do cofre da fonte transmissora.

Estamos a ocupar um lugar de destaque como paí­s cujos habitantes quando lêem não sabem interpretar e sequer entender o que leram. Sei que, de alguma forma, poderí­amos direcionar a qualidade técnica e operacional de nossos veí­culos televisivos, que são concessões públicas, para, senão resolver, ao menos minimizar tal problema descrito. Sei também que a solução está muito longe dos programas de reality show.

Cá ao meu modo, tenho oferecido a minha contribuição, omitindo propositalmente as indicações das citações que ocasionalmente utilizo em meus editoriais e, principalmente, escrevendo, para esta revista, textos que fogem í  regra do esperado como editorial de uma revista de fisioterapia. Desse modo, obrigo as meninas e os  gajos (influência lusitana também proposital) a pesquisarem sobre os autores e a verem as coisas com um olhar um pouco diferente daquele que fomos acostumados na área da fisioterapia. Assim, espero, como dizia Foucault, que o olho não permaneça nas coisas e se eleve até as visibilidades.

Que tal mudarmos a proposta da sociedade do futuro, preconizada no livro "1984", tão atual em 2007, para uma sociedade que possa fazer aquilo que pensa e que foi fruto da sua reflexão, e não daquilo que nos é imposto, quase sempre como o resultado de um reflexo condicionado? 

Published

2018-01-01