Uma música, uma ficção e a ação

Authors

  • Marco Antônio Guimarães da Silva UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v8i3.1848

Abstract

Há um tema filosófico - iniciado por Rousseau e muito discutido pelos filósofos dos séculos XIX e XX - que pergunta se a cultura é inimiga da vida. A questão acaba parando no pensamento do pai da psicanálise, o qual retoma a interessante oposição entre a biologia e a cultura. Para Freud, o homem aspira í  felicidade, obviamente buscando o prazer e fugindo da dor. Na tentativa de fugir dessa dor e alcançar a almejada felicidade, esse homem lança mãos de zilhares de estratégias. Isso explica o sucesso e a fortuna de alguns escritores especializados em confortar e iludir, sem preocupação com o rigor ou a criação literária, as pobres almas humanas ávidas pela tal felicidade. Tal fato igualmente justifica o espaço tomado pelas propostas religiosas e evangélicas, que, de forma semelhante aos tais escritores oportunistas de plantão, faturam como nunca nos nossos e em outros distantes rincões. O refúgio em um mecanismo psicológico de sublimação dos instintos parece encobrir momentaneamente o problema.

Procurando refletir sobre a infelicidade humana, o mesmo Freud define, em um primeiro momento, três fontes para as suas causas: o poder da natureza; a decadência de nosso próprio corpo e insuficiência de nossos métodos para regular as relações humanas na famí­lia, no estado e na sociedade. Mas o psicanalista acaba por observar que a principal causa da nossa infelicidade e dor não são os fatores naturais nem os fatores externos, e sim aqueles que dependem do tipo de sociedade e cultura que nós mesmos construí­mos. E aí­, seguindo a teoria freudiana, vamos chegar í  repressão dos instintos (e tal e coisa), considerados forças antagônicas ao homem, o qual, muitas vezes, biologicamente, deseja a desordem; enquanto os valores que estabelecemos na nossa cultura impedem essa mesma desordem.

Os instintos de agressão e autodestruição, carros chefes da desordem, podem decidir a destruição dos valores culturais instituí­dos. Podem decidir ou já decidiram, caso levemos a sério o que os jornais estampam em seus noticiários, cujas reportagens são a expressão de uma sociopatia capaz de fazer inveja í  sociedade das almas inquilinas das trevas. Ideologias, credos, classe e funções sociais encontram, nas noticias desses jornais, forças suficientes para estratificar a sociedade em que vivemos em ruim, numa visão muito otimista, ou muito ruim, numa visada mais realista

Enquanto esperamos o fim do fim, ao que tudo indica ingênua e resignadamente, e esquecemos, momentaneamente, as profecias apocalí­pticas desse editor, podemos lançar mão dos seguintes meios atenuadores:

Primeiro: ouvir a musica "Vilarejo", cuja letra e refrão transcrevo em parte abaixo, e imaginar-se transportado para o paraí­so:

Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão

Pra acalmar o coração
Lá o mundo tem razão
Terra de heróis, lares de mãe
Paraiso se mudou para lá

Por cima das casas, cal
Frutos em qualquer quintal
Peitos fartos, filhos fortes
Sonho semeando o mundo real

Toda gente cabe lá
Palestina, Shangri-lá

...Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas pra sorte entrar
E em todas as mesas: pão, flores enfeitando
Os caminhos, os vestidos, os destinos
E essa canção tem um verdadeiro amor
Para quando você for..."

Composição: Marisa Monte, Pedro Baby, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes.

 

Segundo: fingir-se turista em sua própria cidade. A gente acaba descobrindo que, quando somos turistas, em qualquer cidade do mundo, fora do Brasil é claro, não nos preocupamos com eleições de polí­ticos corruptos, com máfias seja de onde for, com imundí­cies e sujeiras de bairro,apesar de sabermos que, também lá, esses problemas existem, em escala infinitamente menor. Não nos esqueçamos, inclusive, do direito de ir e vir, no ar ou na terra, sem correr risco de vida, o que, por aqui, parece que se tornou um luxo.

Talvez possamos acrescentar ainda uma opção: indignarmo-nos e agir, seja participando de passeatas, seja organizando abaixo assinados e, principalmente, votando com muito cuidado na próxima eleição (sem esquecer de rezar para que apareça alguém digno de receber os nossos votos, já que, na polí­tica esse espécime parece estar em extinção).

Espero que a primeira das sugestões nos mostre que, pelo menos no plano imaginário, "o lugar" pode existir; que a segunda sugestão sirva apenas, no plano da meditação, para nos dar a isenção e o equilí­brio necessários a sábias decisões; mas que a última das sugestões possa se incorporar no cotidiano do nosso agir. 

Published

2018-01-01