Da miséria absoluta para a miséria relativizada
DOI:
https://doi.org/10.33233/fb.v8i4.1850Abstract
A recente declaração do Sr. Lula da Silva, envolvendo a elite, a bolsa família e a bolsa acadêmica, me fez refletir sobre o tema.
As bolsas acadêmicas oferecidas pelos órgãos fomentadores de investigação cientifica (CAPES, CNPq, Fundações Estaduais de Amparo í Pesquisa, etc.), destinam-se í formação de massa crítica.
Ainda com uma colocação abaixo dos países emergentes, o investimento que se tem feito nessa área, no país, tem demonstrado que o caminho parece ser esse. Mesmo perdendo para Índia, China, Rússia e Coréia do Sul o Brasil ocupa o 15º lugar no ranking mundial, no quesito artigos publicados em revistas, com crescimento de 33% nos dois últimos anos. Já formamos doutores em ritmo semelhante ao de paises ricos, ocupando o 12º lugar no ranking mundial, ainda abaixo da Argentina e Chile, quando se leva em conta a proporção populacional. De qualquer forma, apesar de algumas distorções, parece que o investimento que se tem feito na área começa a dar resultados, que serão otimizados com a experiência que o tempo se encarregará de oferecer a grande quantidade dos recém-doutores.
A pouca intimidade que tenho com relação ao tema da bolsa família me faz buscar algumas informações na mídia escrita e fico a par de que esse programa já beneficia 46 milhões de brasileiros, aproximadamente um quarto de toda a nossa população. Na tentativa de maiores esclarecimentos, recorro também í pagina eletrônica que o Ministério da Saúde mantém no ar e encontro ali a seguinte informação: "O BOLSA FAMÍLIA é um programa de transferência de renda destinado às famílias em situação de pobreza, com renda per capita de até R$ 120 mensais, que associa í transferência do benefício financeiro o acesso aos direitos sociais básicos - saúde, alimentação, educação e assistência social."
Chama a minha atenção a parte da informação que grifei e me vem í cabeça a seguinte pergunta: onde diabos estão a saúde, a educação e assistência social prometidos pela informação colhida no site?
Os profissionais da área de saúde conhecem muito bem o sofrimento que os menos privilegiados financeiramente têm para obter uma vaga ou atendimento para si em um hospital. Esclareça-se, embora não seja o momento para tal, que mesmo os que podem e pagam planos de saúde têm muitas dificuldades para obter atendimento ambulatorial í altura das elevadas quantias que mensalmente desembolsam. Obter uma vaga em CTI, ainda que com exorbitante pagamento, igualmente não é a tarefa fácil. Os pais, por sua vez, também sabem da dificuldade de obtenção de uma vaga para os seus filhos em escolas públicas. Obter a tal vaga em escola pública é tarefa hercúlea que inclui noite insone em longas filas. E finalmente, quando se consegue a vaga, não há a garantia de que o aluno conseguirá aprender alguma coisa.
Não poderia, por falta de conhecimento, criticar a bolsa família. O beneficio pode estar carregado de boas intenções, conseguindo, realmente, levar para a população alvo o alimento imprescindível. Mas será que o caminho é esse, ou só esse? Não estaríamos criando um mecanismo puramente assistencialista que traria como conseqüência uma inevitável acomodação? Teriam os beneficiários dessa bolsa alguma perspectiva ou esperança de trabalho digno e educação para os seus filhos?
O assistido, durante anos, ou talvez durante toda sua existência fora acostumado com alimentação escassa que mal permitira a garantia da sua própria existência. Aparece a bolsa família e agora ele sai da miséria absoluta para uma pobreza relativizada, brindando com louvores o pai governo que veio para salvar-lhe.
Tento inutilmente resistir í tentação de buscar na filosofia alguma explicação para o fato, mas não posso deixar de fazer uma incursão nessa área e audaciosamente proponho o meu diagnóstico para a situação.
"Pão e água proporcionam o maior dos prazeres quando são levados í boca dos que têm necessidade" (Carta a Meneceo, Epicuro, 341-270 AC). Para Epicuro o limite do prazer se encontra na completa ausência de dor e surge tanto da satisfação do desejo como no posterior equilíbrio alcançado. O raciocínio epicurista amparado no empirismo associa a origem do conhecimento í experiência sensível. A moral epicurista também não é do tipo que possa ter efeitos sociais de longo alcance. É uma concepção que tende a brindar um individuo ou grupo de indivíduos ligados por laços de amizade. Esse último parágrafo talvez explique porque saciar a fome de alguém pode trazer tantos louvores para o "benfeitor". Os repetidos cheques doados mensalmente antecipam a presença real e efetiva desse benfeitor. A benfeitoria estabelece laços quase que pessoais com o beneficiado e cria uma rede de intimidade ampliada mais ainda com a imagem de ex-pobre, coitado, que o benfeitor insisteem manter. Seriaesse o motivo da conquista de tanta aprovação e admiração?
Estamos diante de uma verdadeira estratégia de reestruturação cognitiva que, em vez de iniciar pelo arranjo da cabeça, começa e acaba no estomago e no intestino.
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