Faça o que eu digo, mas jamais faça o que eu faço
DOI:
https://doi.org/10.33233/fb.v7i4.2211Abstract
A prematura morte por CA de pulmão de Carlos Azeredo, um dos precursores da fisioterapia respiratória no Brasil, me remeteu aos tempos de juventude, no final dos anos 70, época em que passávamos, Azeredo e eu, algumas horas semanais despreocupados e conversando sobre amenidades.
Nunca deixou de me surpreender a quantidade de cigarros que Azeredo í época já consumia: algo em torno de 4 a cinco maços diários. Lamentavelmente, o quadro que acabei gravando, após esses quase 36 anos de convivência com o Azeredo, foi o do sofrimento de um paciente terminal com câncer, lúcido até praticamente a hora em que morreu. Ainda inconformado com o sentimento de perda do amigo, perguntava-me: por que diabos, logo ele que conhecia profundamente os temas relacionados a CTI e pulmão, não se dera conta do lento suicídio a que se submetera ao longo desses anos?
Derivando para outra área, lembrei-me também, que alguns poucos trabalhos publicados em periódicos apontam para uma alta prevalência de problemas na coluna vertebral e algias vertebrais em pessoal da área de saúde, especialmente os fisioterapeutas.
Algumas ordens e ou sugestões que levamos até nossos pacientes, adaptadas às circunstâncias de cada patologia, podem incluir restrições a exposição a fatores carcinogênicos, cuidados para preservação do sistema músculo-esquelético, proteção do aparelho cardiovascular etc.. Pedimos a esses pacientes que assumam a responsabilidade pelo cuidado de si mesmos, em função de uma biomecânica e higiene corporal correta e somos incapazes de nos proteger sob a mesma ótica.
Porque fazemos exatamente o oposto do que indicamos aos nossos pacientes?
Um dos problemas que enfrentamos para equacionar a questão está na pouca realização de pesquisas com trabalhos na área preventiva, o que obviamente nos leva a ter uma produção de artigos científicos muito aquém do que necessitamos. Em editorial passado optei por justificar e analisar, a luz do pensamento Wittgensteiniano, a preferência do ato curativo pelo preventivo na fisioterapia e a pouca produção na área.
Mas, será que somente o aumento de uma produção amparada por trabalhos científicos publicados em periódicos poderia re-dimensionar o problema e nos levar a re-pensar a forma como agimos? Ou a fonte de tamanho paradoxo estaria em um pensar que transcende a simples explicação de falta de produção acadêmica?
Imagino que os estudiosos do comportamento humano já se debruçaram sob o tema e têm lá alguma teoria que justifique as nossas nocivas e imprudentes ações. Por minha parte, prefiro recorrer a uma linha de pensamento que aponte para duas direções: a primeira amparada em uma hipótese da hipocrisia inconsciente, retratada, mantidas as devidas proporções, por Montaigne (Montaigne, 1533-1592), que nos mostra uma pintura perspicaz da natureza humana e traça uma perfeita radiografia do espírito do século XVI, atenta a todas as inquietudes da época, mas que pode perfeitamente ser utilizada na atualidade:Â Â
    "Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer". (Ensaios - Da Vaidade)
Há um prazer quase que visceral, quando reprimimos uma pessoa que está errada e quando, par e passo, demonstramos ter sólido domínio sobre as falhas que ora apontamos, mas longe dali, cometemos os mesmos ou piores erros do que aqueles que tentamos corrigir. Ou seja: faça o que eu digo, mas (jamais) (grifo meu) faça o que eu faço.
A segunda linha do meu pensar vai em direção ao suicídio inconsciente e aí deixo de lado o amparo psicanalítico que poderia ter de um Freud (1856-1939) ou o substrato sócio-filosófico de um Durkheim (1858-1917). Recorro í literatura de Giovanni Papini (1881-1956), na verdade a fragmentos de sua obra Relatório sobre os homens, que nos dá uma idéia muitíssimo clara da intimidade humana. Ainda que o contexto da obra de Papini se volte para o narcisismo, recolho dali uma frase que poderia ser o ponto de partida para uma reflexão mais profunda para o tema - O homem ama-se e desama-se. Não me atreverei, com receio de que possa estar cometendo uma heresia psiquiátrica, a nos classificar e relacionar como narcísicos vítimas de uma sociedade niilista. Tire você mesmo as suas conclusões.
Seja como for, a desagradável sensação de que posso morrer com muito sofrimento (materializada quando da morte do Azeredo), foi para um passado remoto que não quero mais lembrar e para um futuro longínquo que não consigo imaginar. Não mais faz parte de meu cotidiano. Continuarei a pedir aos meus pacientes que se cuidem, continuarei a executar pesquisas sobre prevenção,continuarei, também, a publicar artigos sobre o tema. Mas se você, caro leitor, se deparar com um dessas publicações ou pesquisas, dou a seguinte sugestão: não tente saber se faço aquilo que sugiro que se faça e que provei que funciona. Você poderia se decepcionar! Â
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