Brasil, meu Brasil brasileiro
DOI:
https://doi.org/10.33233/fb.v15i1.304Abstract
O próximo, por favor, disse o encarregado da triagem. Posso sentar? Não vejo necessidade, a palavra cansaço não existe aqui, melhor se acostumar, mas fique í vontade. Se quiser se sentar, sente-se. Não tardará muito para que você deixe para trás a preconcebida ideia de que ficar na fila por um tempo cansa alguém. Ficar na fila por algum tempo? Parece que estou aqui há séculos. E está. Como pode ver, sou o único atendente aqui, e vocês não param de chegar. O nosso sistema de informação está fora do ar e tenho que completar as fichas manualmente. Confiarei no que me disser; mas, olhe bem, se mentir acabaremos por descobrir, e aí as coisas podem se complicar mais ainda para você. Mentir? E haveria alguma razão para eu mentir nessa altura do campeonato? Que bom que você pensa assim, mas não se iluda, muitos dos que aqui chegam ainda não conseguiram se desvencilhar desse hábito adquirido de dar declarações falsas. E o que devo falar? Aquilo que julgar ter sido mais importante na sua vida, o que deixou em você uma, digamos..., uma marca inesquecível. Você não espera que eu fale alguma coisa agradável, não é mesmo? Não, não espero, mas não se preocupe, aqui somos todos imunes a qualquer coisa. Bem, não sei por onde começar. Sabe, meu senhor, não me julgue mal pelo que vou contar. No fundo, no fundo, eu não era uma má pessoa. Foram as circunstâncias, meu senhor, as circunstâncias, essas malditas circunstâncias. Nasci em uma família muito pobre; no início éramos sete irmãos, mas dois deles morreram com menos de um ano, de fome, meu senhor, de fome, e um outro, o mais velho, acabou morto em um tiroteio com a polícia. Meu pai, acho que de desgosto, acabou morrendo do coração logo após a morte desse meu irmão. Ele poderia ter sido salvo, mas não conseguiu atendimento nos hospitais. Aí ficamos eu, minha mãe e mais três irmãos, menores do que eu. Para piorar a situação, a minha mãe teve um derrame, desses que deixam a pessoa toda torta, sabe? Não podia mais fazer a faxina que fazia. Tentei arrumar um emprego, mas não consegui. Foi então que comecei a pegar as coisas dos outros. Ia pra praia e arrancava cordões, pegava as bolsas daqueles mais distraídos, normalmente os turistas. Um dia dei azar. Me pegaram e me puseram deitado no chão, boca beijando o asfalto quente; sentia o meu corpo queimar, arder como se estivessem passando um ferro quente em cima de mim. Mas o pior ainda não havia chegado, não senhor. Foi juntando gente, juntando gente, e em poucos minutos o círculo que fizeram em torno de mim já havia crescido muito. De repente um cara muito forte me segurou, me levantou o mais alto que pôde e me jogou com toda força no chão. Quiquei como uma bola de pingue-pongue, o sangue começou a jorrar do meu nariz e da minha boca. A ação daquele homem que me levantou ganhou partidários, partidários esses que, sob a aparência de verdadeiras bestas humanas, eram estranhos a qualquer sentimento de piedade e justiça, porque o que faziam estava longe de representar um ato que fizesse com que eu pagasse, í luz da razão, pelo roubo que havia cometido. Me batiam com pedaços de pau, me chutavam em todas as partes. Ai, meu senhor, doía muito, eu não merecia aquilo, não, nunca matei nem feri ninguém. Houve apenas um protesto contra o que faziam comigo. Era um jornalista que até escreveu que quem passasse por ali, e de nada soubesse, não precisaria sondar os humores e os propósitos daqueles indivíduos, porque os seus gestos deixavam claro para quem quisesse ver que ali se perpetuava uma selvageria de fazer inveja a um Torquemada na sua fase mais cruel. Eu li, mas não entendi muito bem, nem sabia quem tinha sido esse tal de Torquemada. Foi um padreco que, na época da Inquisição, torturou e matou muita gente na Espanha. Mas vamos, continue. Pois bem, depois disso fui preso, e me levaram para uma cadeia, de lá fui para um presídio. O que mais me indignou e que até agora me causa revolta foi lembrar que os políticos e os que nos governavam eram colegas meus, todos ladrões como eu, e que aquele povo que quase me esquartejou por ter roubado um colar era o mesmo povo que elegia esses que nos roubavam. Dá para entender, meu senhor? Acho que talvez seja esse o fato que mais tenha marcado a minha mísera vida. Resumindo e finalizando, porque já vejo sinais de cansaço no senhor: o único julgamento que tive foi o realizado pelos próprios presos, que me condenaram í pena de morte. E que morte, meu senhor; me esfaquearam até não poder mais e, como se não bastasse, cortaram a minha cabeça. E isso foi tudo. Aqui estou, na fila dos mortos por violência no meu país, o meu Brasil brasileiro, terra de samba e pandeiro, í espera do meu destino, que, de antemão, já sei qual será.
Tá! Mais um morto pela violência no Brasil. Se acrescentarmos os cinquenta mil assassinatos ocorridos no ano passado, e também os dos últimos trinta anos, chegamos um milhão e noventa mil mortos, anotou o encarregado em um caderno. Bem que eu deveria ter aceitado a minha transferência para a fila de mortos na Guerra do Iraque. Trabalharia muito menos, disse ele, finalizando a entrevista.
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