De sopas e imóveis

Authors

  • Marco Antonio Guimarães UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v14i4.398

Abstract

Zé da pipa já havia assumido o seu posto quando cheguei ao bar do Joaquim, nosso ponto de encontro dominical. Eram 10 da manhã; ambos estávamos fora dos nossos habituais horários. Eu, muito atrasado, e o Zé, excessivamente adiantado. Depois fiquei sabendo que viera direto da noite; aportara por lá às 5 da manhã e dormira até às 8. A julgar pelo número de cartelas espalhadas sobre a mesa, ele já havia entornado cinco chopes e, se o conhecia bem, deveria estar em estado etí­lico pré-beligerante, pronto a desafiar o primeiro que ousasse discordar de suas opiniões "”Você já viu isso? perguntou-me ele, brandindo no ar a primeira página do jornal. Com receio de que ele iniciasse ali um longo discurso, o qual acabaria com palavrório e gestos inapropriados para o horário, assumi a palavra e lhe disse: tal e qual você, também estou indignado. Um absurdo, Zé da Pipa, um verdadeiro absurdo. Funcionou. A faí­sca que alimentaria o seu verborrágico espí­rito incendiário se apagou; dele ouvi apenas: "” pois é, um absurdo. Esse sujeito não era o tal que dava sopa para os pobres? continuou ele, agora em tom mais calmo. "” Não, Zé, não senhor; possuem o mesmo sobrenome, mas não são a mesma pessoa, respondi. Você fez uma baita confusão. O da sopa se chamava Alziro Zarur, e distribuí­a, gratuitamente, pratos de comida para os pobres da periferia do Rio de Janeiro. Criou no inicio da segunda metade do século 20 a famosa Legião Brasileira da Boa Vontade (LBV). O fato de alimentar milhares de bocas famintas deu-lhe grande popularidade, e o tornou uma espécie de celebridade dos desassistidos. O cara já morreu, Zé da Pipa. Se fosse vivo, estaria hoje com 98 anos. E digo mais. Quando completou 61 anos, um de seus principais assessores o sequestrou e baixou-lhe o cacete. O sequestro e a surra foram justificados pelo agressor. Este alegou que Zarur havia alterado o estatuto da instituição que criara, o qual passava, a partir de então, a lhe dar posse dos bens da organização, no caso de que a mesma fosse extinta. Não se sabe se ele daria ou não um jeitinho para acabar com a LBV e faria valer o novo estatuto, abocanhando tudo que construí­ra em nome da caridade, porque ele morreria três anos depois. Bem, como não houve abocanhamento algum, melhor invocar o beneficio da dúvida e pensar que o finado filantropo não arranjaria o fim involuntário da Legião da Boa Vontade, mesmo que conseguisse esticar a sua permanência por aqui.

O Zarur que aparece hoje nos noticiários do jornal é outro, se chama Dahas Zarur. É um pouquinho mais novo, mas começou a elucubrar as sacanagens que aprontaria em sua vida no mesmo ano em que o seu xará fundava a LBV. Pelas informações que você e eu tivemos pelos jornais, parece que esse Zarur também andou fazendo uma caridade, a de distribuir gratuitamente aos parentes (porque ele não é bobo, nem nada, de colocar algo em seu nome) vários imóveis que pertenciam í  Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Você viu a foto dele no jornal? É a cara do Mr. Magoo, aquele velhinho do desenho animado criado em 1949. Um pouco mais alto e mais magro, mas se parece com ele, se parece, sim senhor. E acho até que ele tem, como o velhinho do desenho, uma baita deficiência visual. Talvez seja por isso que não enxergou o que estava escrito nos papeis que assinou e que transferia para os pobres parentes as dezenas de imóveis, todos situados no Leblon, com um dos metros quadrados mais caros do mundo. E o pior, sabe o que é o pior, Zé da Pipa, estou aqui a imaginar o que o cara irá dizer quando for chamado para prestar contas disso tudo. Fará uma maquiagem do mal que cometeu, um tipo de terapia estética das suas tramoias. Isso mesmo; ele vai metamorfosear as suas sacanagens e criar uma justificativa descafeinada para as mesmas, digamos assim; mais permissiva com as doações que fez e que até agora ainda são proibidas. E você o que acha disso tudo? "” Zé da Pipa, Zé da Pipa, você tá dormindo? Acorda, seu fdp, acorda Zé da Pipa. E pensar que gastei todo esse meu latim í  toa.

Published

2016-07-18