De Paris a Spinoza

Authors

  • Marco Antonio Guimarães da Silva UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v13i2.468

Abstract

Nunca fiz segredo da admiração que sinto pela cidade de Paris, seja pela sua arquitetura, seja pela sua cultura ou seja pelas diferentes matizes de luzes que a iluminam. Deixei isso claro nos dois primeiros romances que escrevi e o faço também no livro que escrevo a quatro mãos com Manuel Rui, escritor e poeta angolano, e que deverá ser lançado no final deste ano. Em parte, foram essas caracterí­sticas que me levaram a deixar o Rio de Janeiro para, pelo menos, passar todos os anos, de quatro a cinco meses naquela cidade. Digo em parte porque há motivos de outra natureza, também relacionados com as caracterí­sticas, ou melhor, com as des-caracterí­sticas de um Rio de Janeiro que outrora tive orgulho de chamar de meu.

A última temporada em Paris foi especial e se destacou das demais, porque conheci um grupo de músicos e cantores que, com sol ou com chuva, animam as manhãs de domingo da Rue Mouffetard no coração do Quartier Latin. Ali, moradores cujas idades variam dos 8 aos 80 e eventuais turistas dançam ao som do acordeom de Christian Bassou, um francês apaixonado pelo Brasil e de quem me tornei amigo. Ele, France Dupuye e outros que gerenciam o grupo dominical parecem ser personagens vivos de um livro de conto de fadas, com uma única função: nos trazer alegria e nos fazer esquecer um pouco desse louco mundo em que vivemos. A cidade parece querer retribuir a querência que tenho por ela porque a sua principal universidade, a Sorbonne, me convidou para dar uma conferência e debater o meu último livro, com os alunos da cátedra de literatura portuguesa daquela universidade.

Mas, se a cidade acolhe as pessoas que, com verdadeira paixão cantam em suas ruas, acolhe, lamentavelmente, grupos que celebram paixões muito diferentes. Apesar de ter vivido a maior parte de minha vida aqui no Brasil, ainda não me acostumei a encarar com naturalidade o modo como os nossos governantes e seus súditos diretos vivem algumas de suas paixões.

Uma releitura da obra Ética demonstrada segundo a ordem geométrica de Spinoza (1632-1677) pode nos ajudar a entender, í  luz da filosofia, um pouco dessa historia. A citada obra, considerada como ápice e sí­ntese do pensamento do autor, apresenta axiomas, proposições e demonstrações, seguindo o modelo euclidiano. Spinoza não pretendeu com este método deduzir matematicamente a totalidade do real e nem se propôs fazer uma exposição Galeliana (quantitativa) do mundo fí­sico. A ética propriamente dita tem inicio na parte III do livro e trata sobre a condição e a natureza humana, as quais são arquitetadas de forma determinista.

Ele nos diz: "Não desejamos algo porque o julgamos bom; mas, ao contrário, julgamos que algo é bom porque o desejamos". A parte IV do livro trata da impotência da razão ante as paixões, dos critérios gerais sobre o bem e o mal, do valor das distintas paixões e do modelo do homem livre. Logo no começo, Spinoza nos diz que o homem forma parte da natureza e, portanto, está submetido ao efeito das coisas externas. Dessa forma, as paixões incidem sobre a conduta humana na medida em que sua força pode superar í quela com que o homem preserva a sua existência. E continua: "ainda que as paixões sejam também ideias, a razão não pode anulá-las nem reprimi-las, porque a ideia de uma condição e a condição em si mesma não são da mesma natureza." E uma condição só pode ser vencida pela presença de uma outra de sinal contrário e mais forte que ela. Dada a correspondência entre condição e ideias, o homem é consciente da sua dependência das coisas externas. Na medida em que elas resultem agradáveis ou desagradáveis, surgirá a ideia do bem e do mal. Obviamente o homem, com rarí­ssimas exceções, deseja o que considera bom, mas a razão, sendo diversa daquilo que os homens desejam, só pode considerar bom e virtuoso aquilo que é útil para conservar o seu ser. Desse modo, é bom o que aumenta a sensibilidade do corpo humano ante os corpos exteriores e o que conduz os homens a viverem em sociedade presidida pela concórdia; e é mal tudo aquilo que impede essas coisas.

O que parece estar acontecendo é que os sinais estão trocados. Os grupos de polí­ticos que se locupletam em Paris, sabe Deus com o que, e em atitudes de fragrante deboche tripudiam sobre os pobres coitados que os elegeram, deveriam deixar que suas paixões e submissões ao efeito das coisas externas fossem regidas por um padrão de decência. Dessa forma, resistiriam a breguice de serem fotografados expondo os seus sapatos de U$10.000,00, ou posando em estado etí­lico com guardanapos amarrados í  cabeça.

Uma sugestão. Que tal se começassem a desejar as coisas porque o povo as julga boas, tais como: acabar com o maior í­ndice do paí­s de prevalência e mortes causadas pela dengue (102.000 casos com 22 mortes), melhorar o sistema educacional do estado do Rio de Janeiro, considerado pelas pesquisas como o pior do Brasil, melhorar o caótico atendimento nos hospitais e por aí­ vai. Como não farão nada disso, faço outra sugestão. Renunciem e resgatem a dignidade que talvez um dia tenham tido.

Published

2016-11-27