As que se autorizam a ser as pessoas que não querem ser
DOI:
https://doi.org/10.33233/fb.v16i4.72Abstract
Antes de falar sobre o tema central desta crônica comentarei sobre a minha ida a Luanda, para participar do V Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, o qual, de uma certa forma, relaciona-se ao que discuto agora.
Apesar da via crucis para obtenção do visto e da burocracia do país, a experiência não poderia ter sido melhor, porque a impecável organização do evento, í cargo da UCCLA, minimizou e aplacou as nossas justificadas impaciências. E depois, as qualidades das conferências proferidas pelos escritores convidados por si só já teria valido a viagem. Assistir a uma comunicação de Manuel Rui, e de outros tantos, é sempre um experiência gratificante. Diz- se em Luanda que Manuel Rui marcou o início de uma época literária em Angola, com o seu livro Quem me dera ser onda. As suas colocações, ora em prosa poética, ora em poesia, costumam encantar os seus públicos. Com ele, tive prazer de escrever o meu terceiro romance A bicha e a fila.
Quando recebi o convite com os temas e subtemas para as conferências, resolvi optar por migrações e literatura, por considerá-lo um desafio para os escritores. Um desafio, porque a figura do emigrante, dentro do contexto literário, nos coloca diante de uma complexidade tal que vai muito além do simples deslocamento físico desse emigrante, já que há de se considerar a transição para a nova cultura que ele vai experimentar, um novo idioma que lhe é imposto, novos hábitos, etc. Isso tudo, dentro de um ambiente político e sócio económico, às vezes, muito complicado para ele.
Iniciei a minha fala com a Susan Sontag, analisando o romance Na América, no qual ela fala sobre os emigrantes poloneses que foram para os Estado Unidos. Aproveitei ainda para me apropriar de uma coisa que Sontag disse: "Para escrever, é preciso que o escritor se autorize a ser a pessoa que ele não que ser, dentre as tantas pessoas que existem dentro dele". Afinal, o emigrante quando chega no local escolhido, perde, no primeiro momento, o seu padrão identitário, se acultura para assimilar a cultura local, para depois, então, na medida que a realidade o permita, inserir dados de sua própria cultura Portanto, ele também deve se autorizar a ser a pessoa que, na maioria das vezes, não que ser por forças circunstanciadas í sua nova situação.
Mas nem sempre na literatura os personagens se autorizam a ser pessoas que não querem ser. Vemos isso claramente no livro O exílio e o reino, ultimo livro que Albert Camus escreveu antes de sua morte. Conta a estória de um professor que se exilia compulsoriamente, enfrentando uma total marginalização, porque se recusa a representar o papel que a sociedade lhe impõe. Aqui, o personagem não se autorizou a ser a pessoa que queriam que ele fosse.
Passei ainda pelas obras de G.W Sebald, de Jhumpa Lahiri, Bernardo de Carvalho, Milton Hatoum e Manuel Rui, este último com um conto onde o personagem mulato Luis Alvim recusa a sua própria etnia, e ao mesmo tempo a sua mãe. Pensa que assim será aceito pela sociedade de seu pai português da qual ele acredita fazer parte, ou melhor, na qual deseja se integrar. A qual ele acredita que faça parte. É um deslocado, um sem espaço, que se encaixa perfeitamente no que Pierre Bourdieu chamou de Atopo.
Levantei também a figura, presente em algumas das obras que citei acima, daqueles que são emigrantes dentro de suas próprias cidades e que, por algum motivo, aceitaram a ser a pessoa que não deveriam ser. E foi aí que um colega escritor de Portugal me chamou a atenção para as mulheres maltratadas pelos seus maridos machistas, ou aquelas que, submissas aos poderes religiosos ou regimes políticos autoritários, também se veem na condição de verdadeiras escravas do século XXI. Elas se assemelham aos emigrantes, emigrantes em suas próprias casas, emigrantes em suas próprias cidades, e também, para manter as suas frágeis sobrevivências, se autorizam a ser as pessoas que não querem ser.
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