Mortalidade máxima, mortalidade mínima
DOI:
https://doi.org/10.33233/fb.v11i3.1587Resumo
Percam as esperanças os que imaginam que, í luz do
titulo escolhido para este editorial, escreverei sobre temas
relacionados í epidemiologia ou coisas afi ns. Talvez não os
decepcionasse, se falasse sobre os efeitos causais e distribuições
de frequência das mortalidades; afi nal, lecionei epidemiologia
por vários anos em curso de mestrado. Mas não fugirei
í regra que impus aos mais de 50 editoriais que escrevi para
essa revista. Parto, portanto, para as costumeiras digressões.
Dois mil seiscentos e sessenta e seis é o ultimo romance do
escritor chileno Roberto Bolaño, morto, prematuramente, de
insufi ciência hepática em 2003. A obra de quase mil páginas
tem me levado, de tão interessante, a ultrapassar a média de
tempo que dedico diariamente í leitura . É em uma passagem
dela que encontro o que preciso para escrever esse editorial.
Logo no inicio, há a descrição de uma cena de violência
perpetrada por dois professores, um espanhol e um francês.
Com o pretexto de defender a honra de uma colega da Inglaterra
que os acompanhava no carro, quase matam, a socos
e pontapés, o motorista de táxi que os conduzia, autor das
ofensas í citada colega dos dois.
O que segue ao fato são períodos de grandes arrependimentos,
de choro e de culpas. Certa noite, em conversa
telefônica, trataram de se reconfortar e de lamentar, mais
uma vez, o incidente. Entretanto, í quela altura, no íntimo,
estavam convencidos de que o verdadeiro culpado havia sido
o motorista de táxi. As ofensas ditas por quem os conduzia
foram sufi cientes para justifi car os atos de barbárie que cometeram
e, se naquele momento, o tal motorista aparecesse
diante dos dois, estavam certos de que completariam o trabalho
e o matariam.
Gostaria de tornar-me um personagem de Bolaño e travar
um diálogo com os dois professores para saber o que pensam
da morte. É possível que me dissessem que, no contexto geral
do universo, a extinção é consubstancial com o real e que se
encontra em todas as partes. Que essa morte viria, mais cedo
ou mais tarde, para todos. Contudo, justifi ca-se antecipá-la
em outrem só por uma ofensa? Contraporia eu. C¢est la vie!
Ou melhor C¢est la mort! Diria o personagem francês.
Acho que meus interlocutores fi cariam em apuros. Não
encontrariam amparo para me responder; reduzissem a
realidade a um plano natural (cientifi cismo) ou reduzissem
essa mesma realidade ao plano lógico (idealismo). E como
enfrentariam as suas próprias mortes?
Foi exatamente essa a pergunta que me fi z ao assistir a
entrevistas dos dirigentes máximos de Israel, em que justifi -
cavam o episódio do assalto, por tropas israelenses, em aguas
internacionais, aos navios de bandeira turca que pretendiam
levar ajuda humanitária para a população da faixa de Gaza. A
operação resultou em mais de uma dezena de mortos e outras
tantas de feridos. Lamentamos o episódio, mas faríamos tudo
de novo, declararam os governantes. Se houve culpados, eles
estão nos navios que ousaram desobedecer as ordens de deixar
í mingua a população civil da faixa de Gaza.
Tanto os professores, personagens de Bolaño, como os
responsáveis pelo desatinado assalto parecem seguir a máxima:
"Olhamos a morte dos outros como uma mortalidade
mínima; a nossa própria morte, no entanto, a miramos como
uma mortalidade máxima."
Downloads
Publicado
Edição
Seção
Licença
Autores que publicam nesta revista concordam com os seguintes termos:
Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação, com o trabalho simultaneamente licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution 4.0 que permite o compartilhamento do trabalho com reconhecimento da autoria e publicação inicial nesta revista.
Autores têm autorização para distribuição não-exclusiva da versão do trabalho publicada nesta revista (ex.: publicar em repositório institucional ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial nesta revista.