Indignações I

Autores

  • Marco Antônio Guimarães da Silva UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v8i6.1852

Resumo

Já havia dito que ser turista em terra alheia faz muito bem í  saúde, porque as notí­cias estampadas na imprensa local costumam não nos afetar. No exterior, nós não somos a sociedade e nesse estado temporário de alienação, acabamos por aceitar passivamente o que existe, julgando que o que existe é bom. Muitas vezes, pequenos atos ou delitos acabam contando com a nossa indulgência, porque, quando comparados aos atos e delitos que vivenciamos por aqui, perdem força e tornam-se inexpressivos.

Cá no Brasil, tenho o hábito de ler diariamente três jornais, costume que iniciei, desde 1962, então com 11 anos, quando costumava fazer a leitura da crônica diária que o saudoso Nelson Rodrigues publicava no Correio da Manhã. Nos últimos dias, esse velho hábito acabou me chamando a atenção para uma boa noticia que veio da Espanha: houve significativa redução nos acidentes de automóveis, naquele paí­s, após o endurecimento das leis que punem os delitos de trânsito. A noticia da redução de acidentes nas estradas da Espanha aparece como dado comparativo com a verdadeira tragédia a que somos obrigados a presenciar neste trópico. A conferir: "De acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o paí­s gasta cerca de R$ 22 bilhões por ano com ví­timas de acidentes de trânsito, o equivalente a 1,2% do PIB e mais do que o orçamento do Ministério da Saúde. Mas o custo econômico é insignificante se for comparado com a dor das famí­lias enlutadas e com o contingente de mutilados que sobrevivem ao morticí­nio diário das estradas brasileiras".

As pesquisas mostram ainda que, entre 2002 e 2006, houve 390.651 (trezentos e noventa mil e seiscentos e cinqüenta e um) sinistros, que se especificam, respectivamente, por 225.144 mortes (duzentos e vinte e cinco mil cento e quarenta e quatro), por 132.356 casos de invalidez permanente (cento e trinta e dois mil e trezentos e cinqüenta e seis) e por 33.151(trinta e três mil cento e cinqüenta e um) pagamentos de atendimentos médicos aos segurados.

As estatí­sticas disponí­veis não permitem discriminar os números de feridos leves, feridos graves e inválidos. A pesquisa feita pelo DNER, em 1987, mostrava que, a cada 100 pessoas removidas do local do acidente, como feridos, 25 iriam ficar com lesões graves, ou com invalidez, ou falecer no mês seguinte. Se a mesma proporção se verificar no conjunto dos acidentes de trânsito que ocorrem no paí­s, haveria, cada ano, mais de 100.000 pessoas com lesões graves ou inválidas. O custo sócio-econômico deve ser no mí­nimo da ordem de 30 bilhões de Reais por ano. Todos esses dados dimensionam a exata proporção do problema. A solução para os problemas passa pelo atendimento hospitalar adequado e especializado, pela reeducação, pela re-inserção na vida profissional, pela assistência financeira e pela proteção jurí­dica de centenas de milhares de pessoas.

Merecesse o problema atenção í  altura, no campo do atendimento às ví­timas desses acidentes, haveria necessidade de formação de mão de obra especializada e contratação de profissionais em diversas áreas, incluindo-se aí­ a fisioterapia. Há ainda poucos centros de reabilitação destinados para tal fim e as pesquisas acadêmicas não privilegiam ainda a questão como deveriam. O resultado é que as publicações cientificas acabam não aparecendo em número significativo.

Se o orçamento não alcança a suficiente cifra para equacionar a situação no campo assistencial, medidas educativas preventivas, melhorias nas vias e, principalmente, mais rigor na aplicação das leis poderiam, senão resolver por total, ao menos reduzir o tamanho da tragédia, com custo infinitamente menor.

Os problemas dos acidentes de trânsito e outros tantos também afligem outros paí­ses, mas, como disse ao iniciar esse editorial, "lá a sociedade é o outro". Aqui nós somos a sociedade e me parece muití­ssimo natural que façamos a nossa própria rebelião individual quando achamos que a realidade que nos condiciona está aquém de nossos anseios.

Essa rebelião individual quase sempre evolui para uma indignação, diante de tanta incompetência e falta de vontade polí­tica e humanitária na busca de uma saí­da para a circunstância.

Das três uma: reinventamos o Brasil, ou nos acostumamos a colecionar indignações, ou nos tornamos eternos turistas em um paí­s que, preferencialmente, não pertença a nenhuma das Américas.

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Publicado

2018-01-01