Indignações I
DOI:
https://doi.org/10.33233/fb.v8i6.1852Resumo
Já havia dito que ser turista em terra alheia faz muito bem í saúde, porque as notícias estampadas na imprensa local costumam não nos afetar. No exterior, nós não somos a sociedade e nesse estado temporário de alienação, acabamos por aceitar passivamente o que existe, julgando que o que existe é bom. Muitas vezes, pequenos atos ou delitos acabam contando com a nossa indulgência, porque, quando comparados aos atos e delitos que vivenciamos por aqui, perdem força e tornam-se inexpressivos.
Cá no Brasil, tenho o hábito de ler diariamente três jornais, costume que iniciei, desde 1962, então com 11 anos, quando costumava fazer a leitura da crônica diária que o saudoso Nelson Rodrigues publicava no Correio da Manhã. Nos últimos dias, esse velho hábito acabou me chamando a atenção para uma boa noticia que veio da Espanha: houve significativa redução nos acidentes de automóveis, naquele país, após o endurecimento das leis que punem os delitos de trânsito. A noticia da redução de acidentes nas estradas da Espanha aparece como dado comparativo com a verdadeira tragédia a que somos obrigados a presenciar neste trópico. A conferir: "De acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o país gasta cerca de R$ 22 bilhões por ano com vítimas de acidentes de trânsito, o equivalente a 1,2% do PIB e mais do que o orçamento do Ministério da Saúde. Mas o custo econômico é insignificante se for comparado com a dor das famílias enlutadas e com o contingente de mutilados que sobrevivem ao morticínio diário das estradas brasileiras".
As pesquisas mostram ainda que, entre 2002 e 2006, houve 390.651 (trezentos e noventa mil e seiscentos e cinqüenta e um) sinistros, que se especificam, respectivamente, por 225.144 mortes (duzentos e vinte e cinco mil cento e quarenta e quatro), por 132.356 casos de invalidez permanente (cento e trinta e dois mil e trezentos e cinqüenta e seis) e por 33.151(trinta e três mil cento e cinqüenta e um) pagamentos de atendimentos médicos aos segurados.
As estatísticas disponíveis não permitem discriminar os números de feridos leves, feridos graves e inválidos. A pesquisa feita pelo DNER, em 1987, mostrava que, a cada 100 pessoas removidas do local do acidente, como feridos, 25 iriam ficar com lesões graves, ou com invalidez, ou falecer no mês seguinte. Se a mesma proporção se verificar no conjunto dos acidentes de trânsito que ocorrem no país, haveria, cada ano, mais de 100.000 pessoas com lesões graves ou inválidas. O custo sócio-econômico deve ser no mínimo da ordem de 30 bilhões de Reais por ano. Todos esses dados dimensionam a exata proporção do problema. A solução para os problemas passa pelo atendimento hospitalar adequado e especializado, pela reeducação, pela re-inserção na vida profissional, pela assistência financeira e pela proteção jurídica de centenas de milhares de pessoas.
Merecesse o problema atenção í altura, no campo do atendimento às vítimas desses acidentes, haveria necessidade de formação de mão de obra especializada e contratação de profissionais em diversas áreas, incluindo-se aí a fisioterapia. Há ainda poucos centros de reabilitação destinados para tal fim e as pesquisas acadêmicas não privilegiam ainda a questão como deveriam. O resultado é que as publicações cientificas acabam não aparecendo em número significativo.
Se o orçamento não alcança a suficiente cifra para equacionar a situação no campo assistencial, medidas educativas preventivas, melhorias nas vias e, principalmente, mais rigor na aplicação das leis poderiam, senão resolver por total, ao menos reduzir o tamanho da tragédia, com custo infinitamente menor.
Os problemas dos acidentes de trânsito e outros tantos também afligem outros países, mas, como disse ao iniciar esse editorial, "lá a sociedade é o outro". Aqui nós somos a sociedade e me parece muitíssimo natural que façamos a nossa própria rebelião individual quando achamos que a realidade que nos condiciona está aquém de nossos anseios.
Essa rebelião individual quase sempre evolui para uma indignação, diante de tanta incompetência e falta de vontade política e humanitária na busca de uma saída para a circunstância.
Das três uma: reinventamos o Brasil, ou nos acostumamos a colecionar indignações, ou nos tornamos eternos turistas em um país que, preferencialmente, não pertença a nenhuma das Américas.
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