Carioca não gosta de sinal fechado

Autores

  • Marco Antonio Guimarães UFRRJ

DOI:

https://doi.org/10.33233/fb.v14i2.373

Resumo

Há poucos dias encontrei no Jardim Botânico, bairro da zona sul do Rio de Janeiro,um amigo que não via há quase quinze anos. Seus negócios, primeiro na Europa e depois nos Estados Unidos, provocaram um verdadeiro desarranjo nos nossos eventuais encontros aqui no Rio e jogaram para o ar os bate-papos que tí­nhamos.

Embora ambos estivéssemos com pressa, paramos para nos cumprimentar e marcar um novo dia para conversarmos com mais calma. Pelo menos era essa a nossa intenção. Estávamos na rua Jardim Botânico, principal artéria daquele bairro, que escoa a maioria dos ônibus e automóveis que vêm e vão para a Barra da Tijuca e outros bairros da zona oeste. Por um momento interrompemos os cumprimentos para notar a desembalada carreira dos ônibus, que, como verdadeiros bólidos desenfreados, passavam diante de nós. O episódio despertou a ira do meu amigo, e o que deveria ser uma rápida conversa tornou-se um longo e verdadeiro atode indignação pelo que ví­amos. A partir daí­, passamos a analisar a conduta dos cariocas, como condutores e conduzidos, os quais, de um modo ou de outro, somos todos nós."É, meu amigo, carioca não gosta de sinal fechado." "E não se esqueça que também são sacanas", disse-me ele. É pena que a musicalidade e poesia da música cantada por Adriana Calcanhoto tenha nos servido de âncora para uma nada simpática avaliação do caráter que começamos a traçar do cidadão que vive nessa cidade, que um dia já foi maravilhosa. Deixando de lado o lado metafórico da letra da música (se é que ele existe), fixei-me na sua literalidade para me lembrar de um acidente do qual fui ví­tima em Ipanema, no ano de 1972: meu carro, um fuscão, totalmente triturado por um ônibus que avançou o sinal, foi dado como "perda total pelo seguro". Até hoje não sei como escapei ileso. Vieram também í  tona alguns acidentes mais recentes, um com o ônibus que tombou em um viaduto na avenida Brasil, fazendo 7 ví­timas mortais e outras tantas feridas, por causa de uma briga entre motorista e passageiro. Pelo que foi noticiado, o passageiro, um jovem estudante de engenharia, teria desacordado o motorista com um chute no rosto. O motorista, por sua vez, com recorde de infrações no trânsito, recusou-se a parar em um ponto, o que teria gerado toda a confusão. Li também na imprensa que outro ônibus, em alta velocidade, invadiu um posto de gasolina, matando e provocando amputação bilateral de pernas em uma mulher de trinta e poucos anos.

Inevitavelmente avançamos para as comparações. As referências paradigmáticas de nossa conversa, que nos serviram para essas comparações, foram as cidades na Europa onde costumamos passar uma longa temporada todos os anos. Não são um paraí­so, têm lá seus problemas, mas nada que se compare í  violência da nossa urbe, manifestada não só nesses exemplos que acabei de dar, como também demonstradas em outras inúmeras situações. Lá no outro continente, diferentemente daqui, os problemas estão minimamente controlados. Temos a real percepção de que ao sairmos de casa, salvo rarí­ssimas exceções, voltaremos vivos e sem nenhuma amputação de membro. Aqui, essa percepção transfigura-se em uma ilusão, a ilusão de acharmos que nada nos acontecerá, que estamos blindados aos "cariocas que não gostam de sinal fechado"; "aos cariocas que são sacanas."

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Publicado

2016-07-16